O BDSM – sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo – reúne práticas eróticas que envolvem dor, restrição, jogo de poder e outras dinâmicas não normativas.
Por lidar com limites físicos e psicológicos, a comunidade BDSM desenvolveu protocolos de segurança para garantir que essas práticas ocorram de forma ética e consensual.
Esses protocolos são resumidos em acrônimos (como SSC, RACK, PRICK, SSICK, 4Cs/CCCC, BORK entre outros) que orientam praticantes sobre riscos, consentimento e cuidados durante as sessões.
Este artigo explora os principais protocolos de segurança no BDSM, descrevendo:
- a definição e origem de cada termo
- exemplos de práticas associadas
- o nível de risco envolvido
- aspectos psicológicos (confiança, negociação, autoconhecimento, impacto emocional)
- críticas ou limitações de cada protocolo.
Também apresentamos uma tabela comparativa do menos arriscado ao mais arriscado e discutimos brevemente os aspectos legais do BDSM no Brasil, incluindo legislação e jurisprudência relevante.
Advertência
Este texto descreve algumas práticas que podem, para certas pessoas, despertar reações emocionais intensas ou lembranças difíceis.
Algumas dessas práticas são consideradas de alto risco e, por vezes, situam-se em zonas cinzentas da ética e da legalidade dentro da própria comunidade BDSM. Não estou aqui para julgá-las, tampouco para recomendá-las ou condená-las. Seria ingênuo, no entanto, ignorar que elas existem — tanto no plano da fantasia quanto na realidade.
Por isso, como psicoterapeuta, considero fundamental estar preparado para acolher quem traz essas vivências, com escuta ativa e empática. Meu compromisso é oferecer um espaço de cuidado que permita à pessoa cliente refletir sobre o sentido que tais práticas têm para sua integridade psíquica e corporal.
Acredito que profissionais da Psicologia devem estar presentes com ética e sensibilidade, atentos aos aspectos subjetivos e relacionais envolvidos, sem julgamento e com profundo respeito pela experiência vivida de cada pessoa.

Índice
O que são protocolos de segurança no BDSM?
No contexto do BDSM, protocolos de segurança são diretrizes consensuais que os praticantes seguem para diferenciar uma interação segura e consensual de uma situação de abuso.
Eles funcionam como uma espécie de “código de ética” do mundo kink, enfatizando a importância do consentimento informado de todos os envolvidos e delimitando quais práticas e riscos são aceitáveis.
Desde os anos 1980, expressões como “Seguro, São e Consensual” (Safe, Sane and Consensual – SSC) tornaram-se lemas fundamentais para distinguir BDSM de violência.
A mutualidade do consentimento é justamente o que diferencia a prática sadomasoquista consensual de crimes como agressão sexual ou violência doméstica
Com o tempo, porém, outros acrônimos surgiram para abordar nuances que o SSC original não cobria. Por exemplo, reconhecendo que nenhuma atividade é totalmente isenta de risco. Ou enfatizando a responsabilidade pessoal de cada participante.
Cada protocolo traz uma filosofia sobre risco e cuidado no BDSM. Isso varia de abordagens mais conservadoras (priorizar apenas práticas consideradas “seguras”) até visões que aceitam riscos maiores contanto que haja plena consciência e consentimento.
É importante notar que esses acrônimos não são regras rígidas impostas por alguma autoridade, mas sim motos e princípios difundidos pela comunidade.
Muitas pessoas inclusive aderem a mais de um simultaneamente, ou adaptam as ideias à sua dinâmica pessoal. A seguir, examinaremos os principais protocolos e o que eles significam na prática.
1. Safe, Sane and Consensual (SSC) – “Seguro, São e Consensual”
Definição e Origem do SSC
Safe, Sane and Consensual (SSC), em português “Seguro, São e Consensual”, foi o primeiro grande lema de segurança a se espalhar na comunidade BDSM moderna.
Surgiu no início dos anos 1980, atribuído a David Stein (membro da Gay Male SM Activists de Nova York) para estabelecer um padrão mínimo ético que distinguisse a “brincadeira” BDSM consensual de abusos violentos
Desde então, SSC foi amplamente adotado por grupos e praticantes pelo mundo.
A ideia central é que qualquer atividade BDSM deve ser:
- (1) Segura – realizada de forma a minimizar riscos objetivos de dano;
- (2) Sã – feita por pessoas em seu juízo perfeito, ou seja, capazes de discernir limites e consequências (sem coação, sem estar sob forte influência de drogas, etc.);
- e (3) Consensual – com consentimento explícito de todos os participantes em cada ato.
Práticas relacionadas do SSC
Dentro do espírito SSC, encoraja-se preparação e cautela. Por exemplo, uso de palavra de segurança (safeword) para interromper a cena se necessário, negociação prévia detalhada dos limites do que será feito, uso de equipamentos adequados (algemas com trava de segurança, tesoura médica para cortar cordas em emergência, etc.) e cuidados básicos de saúde (esterilizar instrumentos, usar preservativos e luvas, não misturar álcool em excesso com práticas de risco, etc.).
Em termos de escolha de atividades, SSC tende a favorecer práticas vistas como de baixo risco – como spanking moderado, bondage simples, flogging leve – evitando ou tratando com extrema cautela aquelas intrinsecamente mais perigosas (por exemplo, asfixia erótica, uso de lâminas, fogo, suspensões complexas).
- “Seguro” não significa “zero risco”, mas sim que se busca reduzir ao máximo as chances de algo dar errado dentro do razoável.
- “São” implica que os praticantes estão em condições psicológicas e cognitivas de consentir e conduzir a cena (por isso, evitar tomar decisões sob forte alteração mental).
- E “Consensual” é autoexplicativo: tudo deve ser acordado, e consentimento pode ser retirado a qualquer momento. Esses pilares visam coibir qualquer dinâmica coercitiva ou irresponsável.
Nível de risco do SSC
O SSC é considerado o protocolo de abordagem mais conservadora em relação aos riscos. A orientação é: “não faça se não for seguro e dentro da sanidade”.
Na prática, claro, risco zero não existe, mas seguidores de SSC procuram atividades que um “observador razoável” julgaria relativamente seguras e dentro dos limites do bom senso.
Por exemplo, alguém estritamente SSC talvez evite experiências de dor extrema ou situações imprevisíveis. Assim, podemos dizer que o SSC preconiza um nível de risco baixo, onde qualquer risco significativo deve ser mitigado ou descartado.
Se uma prática for considerada muito provavelmente perigosa ou insana, ela estaria fora do que é “SSC”. Isso torna o SSC ideal para iniciantes e para estabelecer uma base de confiança, pois enfatiza prudência.
Aspectos psicológicos do SSC
O SSC reforça a necessidade de confiança mútua e comunicação clara.
Como todos devem estar “sãos”, espera-se que dominantes e submissos estejam conscientes e atentos ao estado um do outro. Isso envolve autocuidado e cuidado com o parceiro – por exemplo, um dominador SSC sempre observará sinais de sofrimento excessivo no submisso e respeitará a palavra de segurança imediatamente.
O SSC também traz autoconhecimento: cada pessoa deve conhecer seus limites físicos e emocionais “sãos” antes de consentir.
Para muitos praticantes, seguir SSC ajuda a aliviar a ansiedade ou culpa, pois eles sabem que estão respeitando parâmetros éticos claros.
Do ponto de vista clínico, essa abordagem pode contribuir para o bem-estar psicológico, já que estabelece uma estrutura segura onde a exploração erótica acontece com responsabilidade, diminuindo riscos de trauma.
O pós-cena (aftercare) também é valorizado: após sessões intensas, dominantes e submissos cuidam um do outro (com conforto físico e apoio emocional) para voltar ao equilíbrio, fortalecendo laços de confiança.
Críticas e limitações do SSC
Embora seja um marco importante, o SSC não escapou de críticas. Uma das principais é que o conceito de “seguro” e “são” varia de pessoa para pessoa – o que é seguro o suficiente para um pode não ser para outro.
Atividades como spanking leve poderiam ser consideradas seguras pela maioria, mas e quanto a bondage prolongada ou jogos psicológicos intensos? São seguros ou não?
Alguns argumentam que o rótulo “seguro” pode criar uma falsa sensação de segurança, desestimulando a discussão franca dos riscos.
De fato, com o passar do tempo, notou-se que nenhuma atividade é 100% segura, e que é melhor falar em graus de risco do que em algo completamente seguro ou não
Da mesma forma, o termo “são” já foi apontado como potencialmente estigmatizante – sugere que certas fantasias seriam insanas, ou levanta a questão: quem define o que é sanidade no contexto sexual?
Pessoas com fetiches mais “hardcore” às vezes sentiam que o SSC as rotulava implicitamente de insanas ou “menos bem-vindas” na comunidade.
Além disso, críticos dizem que criminosos espertos podem alegar que algo foi consensual e “dentro do SSC” mesmo não sendo, usando o lema como cortina de fumaça; ou seja, SSC por si só não previne abusos se os envolvidos não forem honestos.
Por fim, há o ponto legal: mesmo que duas pessoas sigam SSC à risca, isso não garante proteção jurídica caso haja lesão – a lei pode não reconhecer o consentimento em certos casos (voltaremos a isso na seção legal)
Essas limitações motivaram a criação de novos acrônimos que complementam ou corrigem lacunas do SSC.
2. RACK – Risk-Aware Consensual Kink (Kink Consensual com Risco Conhecido)
Definição e Origem do RACK
Risk-Aware Consensual Kink (RACK), traduzido livremente como “Kink Consensual com Ciência do Risco”, surgiu no final dos anos 1990 como resposta às limitações percebidas no SSC.
O termo foi proposto por Gary Switch em 1999, num fórum da comunidade BDSM, e ganhou adoção entre praticantes mais experientes envolvidos em práticas de risco, conhecidas como edge play.
A filosofia do RACK afirma que qualquer atividade sexual alternativa (kink) envolve riscos, e o importante é que todos os participantes estejam conscientes e informados desses riscos, consentindo mesmo assim.
Em outras palavras: “Sim, o que estou fazendo é perigoso, mas eu sei exatamente quais são os riscos e, de mente limpa, aceito corrê-los consensualmente.”
O RACK enfatiza responsabilidade individual de cada um pelo seu próprio bem-estar durante a cena.
Em vez de se apoiar na noção talvez ingênua de “seguro”, o RACK abraça a realidade de que nenhum ato é totalmente seguro, preferindo discutir quão arriscado algo é e como mitigar esses riscos.
O acrônimo destaca dois elementos: Risk-aware (ciente do risco) e Consensual (consensual), lembrando que o consentimento só é válido se for informado – ou seja, a pessoa sabe a que está consentindo.
O “Kink” no final apenas indica que falamos de práticas sexuais alternativas.
Práticas relacionadas do RACK
Sob o RACK, muitas vezes se incluem as chamadas práticas de alto risco ou edge play, que pelo SSC tradicional talvez fossem desencorajadas.
Exemplos: asfixia erótica (breathplay), cortes superficiais (knife play), uso de choques elétricos, suspensão corporal complexa, jogos com fogo, blood play (uso de agulhas, sangue), entre outros.
Essas atividades têm risco significativo de ferimentos (ou pior, no caso de asfixia), mas praticantes RACK argumentam que, com preparo e conhecimento, podem ser realizadas com relativa segurança ou pelo menos com risco calculado.
Assim, alguém adepto do RACK não dirá que sua cena de asfixia é “segura” – mas dirá que está ciente de que pode ocorrer desmaio ou dano se algo sair errado, e que tomou precauções (como ter uma pessoa de apoio monitorando ou usar um sinal específico para soltar o parceiro a tempo).
No RACK, a negociação prévia é ainda mais minuciosa: discute-se explicitamente os piores cenários de cada prática e verifica-se se todos estão de acordo em prosseguir.
Por exemplo, antes de um jogo com facas, top e bottom conversam sobre riscos de cortes, cicatrizes, necessidade de primeiros socorros, e concordam em como agir caso um limite seja acidentalmente ultrapassado.
Ferramentas de redução de risco, como treinamento em primeiros socorros, planejamento de emergência, presença de equipamentos de segurança (extintor de incêndio quando há fogo, tesoura hospitalar em bondage etc.), são comuns.
Em essência, o RACK não proíbe nenhuma prática específica, mas exige que nada seja feito às cegas: “Conheça bem o risco ou não faça”.
Nível de risco do RACK
Comparado ao SSC, o RACK assume um nível de risco maior, ou melhor, variável. Tudo depende do tipo de atividade escolhida e do preparo.
O importante é que o risco é consciente e aceito. O lema do RACK é que não existe “seguro ou não seguro”, apenas “mais seguro” ou “menos seguro” – um espectro de riscos que cada um deve avaliar
Assim, praticantes RACK podem muito bem engajar apenas em atividades leves também; a diferença é a filosofia: mesmo numa sessão de spanking simples, eles reconhecem que hematomas podem ocorrer e isso faz parte do acordo.
Já atividades realmente perigosas só são recomendadas a quem tenha expertise, justamente porque o risco aqui é encarado com seriedade.
Podemos dizer que o RACK abre as portas do BDSM para o “risco calculado” – o foco não é evitar todo risco, e sim gerenciá-lo conscientemente.
Em termos de classificação, o RACK engloba desde risco baixo até risco alto, dependendo do que se faz; mas sempre com consciência como palavra-chave.
Aspectos psicológicos do RACK
O RACK traz implicações psicológicas importantes.
Primeiro, exige um grau elevado de autoconhecimento e maturidade emocional para avaliar os próprios limites de risco.
Nem todo mundo consegue julgar friamente os perigos a que se expõe (especialmente quando envolvido pela excitação sexual ou em estado de sub space); por isso, a comunicação honesta é vital.
Esse protocolo encoraja discussões francas sobre medos, gatilhos emocionais e worst-case scenarios.
Por exemplo, alguém com trauma de afogamento talvez deva evitar asfixia, ou ao menos comunicar esse histórico. A confiança entre parceiros precisa ser sólida: o bottom confia que o top possui conhecimento técnico e bom senso para manejar o risco; o top confia que o bottom lhe dará feedback real (já que, se o bottom minimizar desconforto por vergonha, pode acabar realmente machucado).
Quando bem executado, o RACK pode aprofundar laços – há uma sensação intensa de cumplicidade em “desafiar o perigo juntos”.
Muitos descrevem experiências RACK como emocionalmente catárticas, pois envolvem adrenalina e vulnerabilidade superadas com sucesso graças à parceria.
Por outro lado, é psicologicamente exigente: se algo der errado, a culpa ou trauma podem ser significativos. Por isso o RACK enfatiza não só a preparação antes, mas também aftercare e processamento emocional depois.
Um dominador, por exemplo, deve estar preparado para apoiar o submisso em caso de subdrop (queda emocional pós-cena) – e vice-versa, já que doms também podem vivenciar dumping emocional.
Em resumo, o RACK convida a uma responsabilidade psicológica: não basta querer a emoção do risco, é preciso ter estrutura mental para lidar com ele e com suas possíveis consequências.
Críticas e limitações do RACK
Críticos do RACK apontam que, ao permitir mais riscos, ele pode ser usado como desculpa para imprudência.
Uma pessoa inexperiente pode subestimar perigos achando que “basta estar ciente” para estar segura – quando na verdade consciência sem competência técnica não evita acidentes.
Por exemplo, saber que um golpe de flogger muito forte pode causar dano interno não impede que isso ocorra se o praticante não tiver treinamento de como bater corretamente.
Assim, alguns temem que o RACK, nas mãos erradas, leve a mais lesões, pois pode atrair perfis temerários que dizem “ok, eu sei que é arriscado” e prosseguem mesmo sem preparo suficiente.
Outra limitação é como medir se alguém realmente está “ciente” do risco. Ser “risk-aware” implica um nível de conhecimento – idealmente, pesquisa, aprendizado com outros, prática gradual.
Mas na excitação do momento, será que todos fazem essa lição de casa? Pode haver falsa sensação de segurança intelectual: por ter lido um artigo sobre suspensão, o top acha que está tudo sob controle, porém na prática pode faltar habilidade.
Além disso, se ocorrer um acidente sério, a abordagem RACK de “cada um responsável por si” pode complicar a atribuição de culpa – por exemplo, um submisso concordou em ser submetido a facas e acabou com uma cicatriz indesejada; ele estava ciente mas depois se arrepende – de quem é a responsabilidade?
No SSC, provavelmente diriam que o top ultrapassou o “seguro”. No RACK, poderia haver um jogo de empurra (“você aceitou o risco”).
Essa zona cinzenta motivou o surgimento do próximo protocolo, PRICK, que tenta enfatizar a responsabilidade de forma mais clara.
Por fim, há quem simplesmente não se sinta confortável com RACK por preferir uma abordagem mais cuidadosa – e tudo bem; os acrônimos não são mandatórios, e muitas comunidades BDSM ainda seguem o SSC tradicional em eventos públicos para evitar mal-entendidos com iniciantes ou terceiros.
Em suma, o RACK não invalida o SSC, apenas o expande, mas requer educação continuada dos praticantes para funcionar bem.
3. PRICK – Personal Responsibility, Informed Consensual Kink (Responsabilidade Pessoal e Consentimento Informado no Kink)
Definição e Origem do PRICK
Personal Responsibility, Informed Consensual Kink (PRICK), traduzido como “Responsabilidade Pessoal, Kink Informado e Consensual”, é um acrônimo posterior ao RACK que ganhou força nos anos 2000.
Não se sabe ao certo quem cunhou o termo, mas ele passou a aparecer em discussões online e na literatura sobre sexualidade alternativa como uma evolução do RACK.
A essência do PRICK é reforçar explicitamente a responsabilidade individual de cada participante em uma cena BDSM, junto com a necessidade de consentimento plenamente informado.
Enquanto o RACK já pressupõe conhecimento de risco, o PRICK sublinha que cada pessoa tem o dever de se informar e se responsabilizar pelo que acontece.
Em outras palavras: “Se você participa do kink, cabe a você estudar, entender os riscos e cuidar para que suas ações sejam responsáveis – por si e pelos outros.”
Não basta estar ciente; é preciso assumir responsabilidade ativa.
O PRICK inclui o consentimento em seu nome (“informed consensual kink”) indicando que sem informação adequada, não há consentimento válido – um ponto alinhado com RACK – mas foca no “Personal Responsibility” exatamente para evitar a lacuna apontada acima, de gente usando RACK de forma leviana.
É um lembrete de que liberdade no BDSM vem junto da obrigação ética: se algo der errado, não dá para culpar só o parceiro ou o destino, todos os envolvidos tinham a carga de ser cuidadosos.
Práticas relacionadas do PRICK
Na prática, o PRICK não difere muito do RACK quanto ao escopo de atividades permitidas – ambos aceitam potencialmente qualquer prática, contanto que sejam consensuais e com entendimento dos riscos.
Portanto, edge plays como fogo, eletroestimulação, agulhas, etc., também podem estar sob um acordo PRICK. A diferença está mais na atitude e preparação de cada participante.
Por exemplo, alguém adepto do PRICK antes de uma cena de suspensão por cordas vai não só conversar sobre os riscos (como no RACK), mas estudar ativamente as técnicas de nós, frequentar workshops de shibari, preparar seu condicionamento físico talvez, e mesmo assim assumir: “Se eu me machucar, sei que fui eu que aceitei e poderia ter dito não”.
O bottom, por sua vez, também tem que fazer sua parte – aprender sobre os efeitos que pode sentir, comunicar condições médicas (ex: problemas de circulação, lesões prévias) e igualmente entender que escolheu se submeter àquilo conscientemente.
Pode-se dizer que o PRICK busca criar praticantes mais informados e proativos. Grupos BDSM que adotam PRICK frequentemente incentivam educação contínua: leituras, cursos de primeiros socorros, debates sobre consentimento e ética.
A negociação pode incluir algo como um “checklist de informação”: cada risco identificado vem seguido de “você se responsabiliza caso isso ocorra?”.
Isso não significa isenção total do dever de cuidado mútuo, mas enfatiza que ninguém está participando alheio ou passivamente.
Ambos os lados do chicote (top e bottom) carregam deveres: o top de não fazer além do que sabe fazer com segurança, e o bottom de não aceitar além do que sabe que aguenta ou deseja.
Nível de risco do PRICK
O PRICK, assim como o RACK, acomoda desde cenas leves até as pesadas. Seu diferencial não é quantificar o risco, mas gerir a responsabilidade sobre o risco.
Então, o nível de risco pode ser moderado a alto – variando com a cena – mas sempre com a ideia de que cada um está consciente e responsável.
Em termos de “quão arriscado”, podemos situá-lo junto ao RACK: ambos permitem riscos consideráveis se bem discutidos.
O PRICK, porém, tende a atrair praticantes que se empenham em tornar o risco o menor possível através de preparação (afinal, responsabilidade pessoal implica tentar evitar acidentes).
Ou seja, alguém PRICK ao planejar uma cena de alto risco possivelmente investirá bastante em treinamento e medidas de segurança, potencialmente reduzindo o risco real comparado a um cenário RACK negligente.
Porém, risco residual sempre há, e se no RACK já se aceitava isso, no PRICK se aceita mas com a disposição de arcar com as consequências de modo maduro.
Em resumo, o range de risco vai de baixo a alto, dependendo das escolhas, mas o espírito PRICK é: “qualquer risco que eu aceitar, sei que a decisão foi minha e sou corresponsável pelo resultado.”
Aspectos psicológicos do PRICK
O PRICK tem um componente psicológico de empoderamento e dever. Para o dominante, reforça que ele não é apenas livre para “ir mais longe” – ele também terá de lidar eticamente se algo sair do controle.
Para o submisso, enfatiza que sua submissão não é passiva: ele entrega consensualmente poder ao outro, mas não abdica de seu eu – ele deve permanecer vigilante de si.
Em terapia, esse conceito é interessante pois combate a ideia de que o submisso seja “vítima” ou desprovido de agência; pelo PRICK, ambos top e bottom são agentes morais ativos.
Esse protocolo também lida com o psicológico de prevenção de arrependimento ou culpa excessiva. Se todos entraram cientes e responsáveis, caso surja uma lesão ou abalo emocional, a tendência talvez seja lidar de forma mais construtiva: em vez de culpar o outro cegamente, ambos reconhecem sua parcela e podem focar na resolução (por exemplo, buscar ajuda médica ou psicológica, repensar limites juntos, etc.).
Claro, isso é o ideal – na realidade, emoções são complexas.
O PRICK também exige autodisciplina e muita comunicação interna: cada participante deve fazer um “check-in” consigo mesmo – “Estou confortável em assumir este risco? Estou preparado? Ou estou indo na onda do parceiro sem realmente concordar?”.
Essa autorreflexão constante pode ser psicologicamente desafiadora, mas muito saudável, pois evita que alguém ultrapasse limites por pressão do momento.
Em termos de confiança, se o RACK já pedia confiança, o PRICK também pede transparência – por exemplo, admitir falhas.
Um dom responsável vai admitir se não tem experiência suficiente numa técnica e talvez recuar; um sub responsável vai admitir se não entendeu algum risco ou se tem uma restrição pessoal.
Essa honestidade previne problemas e reforça a parceria.
Depois da cena, a responsabilidade pessoal continua: praticantes PRICK costumam avaliar juntos o que aconteceu (debriefing), cada um reconhecendo o que poderia melhorar.
Esse grau de maturidade psicológica faz do PRICK um protocolo bem visto por terapeutas kink-aware, pois demonstra um ambiente onde sexualidade alternativa é vivida com consciência, autonomia e cuidado mútuo, fatores que protegem a saúde mental.
Críticas e limitações do PRICK
Alguns veem o PRICK apenas como “RACK com outro nome”. Realmente, há bastante sobreposição – ambos falam de consentimento informado e aceitação de risco.
A diferença principal é a ênfase em responsabilidade pessoal, e críticos dizem: “Mas é óbvio que cada um deve ser responsável; isso já está implícito no consentimento.”
No entanto, situações práticas mostram que nem sempre as pessoas agem assim, daí a necessidade de frisar.
Outra crítica possível é que o PRICK poderia ser interpretado como uma “cláusula de não responsabilização” – ou seja, se algo der errado, o top poderia tentar isentar-se dizendo “mas você assumiu o risco, não reclame”.
Isso seria um mau uso do conceito, pois responsabilidade pessoal não elimina a responsabilidade do outro; ambos têm sua parte.
Assim, é fundamental entender que responsabilidade compartilhada não significa isenção mútua.
Cada um cuida de si e do parceiro. Se um dominador foi negligente além do acordado, o fato do sub ter consentido informado não exime o dominador da culpa de um erro técnico, por exemplo.
Há também a questão de complexidade: com tantos acrônimos, alguns na comunidade consideram exagero multiplicar termos – SSC, RACK, PRICK… no fim todos buscam consentimento e segurança.
Essa proliferação é alvo de piadas (“sopa de letrinhas” do BDSM). Entretanto, defensores do PRICK argumentam que vale a pena se isso evitar que pessoas joguem a cautela ao vento.
Por fim, uma limitação do PRICK é ser menos conhecido do grande público. Enquanto SSC é quase universal e RACK relativamente famoso, PRICK permanece mais restrito a círculos informados.
Portanto, pode haver falta de compreensão do termo fora desses meios – ao conversar com um terapeuta leigo em BDSM ou autoridade legal, falar “seguimos PRICK” pode não esclarecer muito.
Assim, educar sobre seu significado é necessário. Ainda assim, o PRICK se alinha bastante com princípios de ética pessoal e é citado inclusive em literatura acadêmica sobre terapia com clientes BDSM (ex.: o manual Becoming a Kink-Aware Therapist, de 2016, menciona esses acrônimos).
Em suma, sua mensagem central – conhecimento e responsabilidade – é difícil de contestar, mas sua implementação depende da boa-fé de todos os envolvidos, como qualquer protocolo.
4. SSICK – Safe, Sane, Informed, Consensual Kink (Seguro, São, Informado e Consensual)
Definição e Origem do SSICK
Safe, Sane, Informed, Consensual, Kink (SSICK) é um acrônimo menos comum, cuja sigla curiosamente forma a palavra “sick” (do inglês, “doente” ou “perverso”) – talvez uma ironia voluntária, resignificando o termo.
Ele é, essencialmente, uma tentativa de integrar todos os elementos do SSC, RACK e PRICK num único conceito abrangente.
O SSICK adiciona “Informado” aos três elementos do SSC e inclui explicitamente “Kink” (para deixar claro que se aplica às práticas não convencionais).
Sua proposta é: ser seguro e são (como no SSC), mas também completamente informado (como pregam RACK/PRICK), mantendo tudo consensual dentro do universo do kink.
O SSICK não parece ter um “autor” específico; ele emergiu em fóruns online e discussões educacionais por volta da década de 2010.
Pode-se dizer que é um resumo pedagógico – alguns educadores BDSM o usam para ensinar novatos, pois o SSICK, em cinco letras, lembra todos os pontos importantes: segurança, sanidade, informação, consentimento e contexto kink.
Uma publicação no Reddit o descreve como incorporando “tudo que vimos até agora, para evitar abuso e violação do bem-estar de alguém”
Em outras palavras, nasceu para precluir a possibilidade de brechas: se algo é seguro, são, informado e consensual, dificilmente será abusivo.
Práticas relacionadas do SSICK
Sob a égide SSICK, qualquer prática BDSM pode teoricamente ocorrer, desde que os critérios estejam cumpridos.
Pense no SSICK como um “checklist” que cada cena deve marcar:
- Está segura? (tomamos precauções suficientes dentro do possível)
- Está sã? (todos com julgamento claro e sem coerção ou incapacidade)
- Está informada? (todos entendem os riscos, condições e têm conhecimento do que vão fazer)
- Está consensual? (todos concordam voluntariamente e continuam podendo manifestar consentimento contínuo).
Se sim, então é Kink dentro dos conformes.
Por isso, edge plays também são permitidos, assim como no RACK/PRICK.
A diferença é que não abre mão do termo “seguro” – ou seja, mesmo conscientes do risco, os praticantes SSICK vão tentar garantir que a prática seja a mais segura e sensata possível antes de prosseguir.
Por exemplo, uma dupla querendo fazer fire play (brincadeira com fogo) sob SSICK: eles vão verificar ambiente (seguro contra incêndio, sem materiais inflamáveis por perto), usar um extintor (segurança), ambos estarão sóbrios e focados (sanidade), terão lido sobre técnicas de fogo e treinado talvez em baixa escala (informação), e obviamente concordam plenamente e podem parar quando quiserem (consensual).
Assim, o SSICK funciona quase como um acrônimo-mnemonic para planejamento de cenas.
Em práticas mais convencionais, o impacto é semelhante: por exemplo, num simples spanking, lembrar do “informado” pode significar explicar ao iniciante como o corpo pode reagir (vermelhidão, possível hematoma amanhã) e ter certeza que ele entendeu e topa mesmo assim.
Isso formaliza o que muitos já fazem intuitivamente.
Nível de risco do SSICK
Como o SSICK combina SSC com RACK/PRICK, ele busca equilibrar risco moderado.
Ou seja, minimiza riscos quando possível, mas reconhece e informa os riscos que forem inevitáveis.
Podemos posicioná-lo como um protocolo de risco baixo a moderado, tendendo a evitar o extremo.
Em teoria, cobriria todo o espectro – do leve ao pesado – mas pelo seu nome carregar “Safe” e “Sane”, dificilmente adeptos do SSICK se engajariam em algo exorbitantemente perigoso ou bizarro, pois isso fugiria do “são” ou tornaria impossível chamá-lo de seguro.
Então, um praticante SSICK, mesmo informado, talvez decida não fazer um jogo com arma de fogo carregada (gunplay) por julgar que não tem como isso ser “são e seguro” de forma alguma.
Já práticas intermediárias com devidos cuidados entrariam. Assim, o SSICK pode ser visto como hierarquicamente abaixo do RACK/PRICK em tolerância a risco, mas acima do SSC puro (porque adiciona o elemento “informado” que permite considerar certas práticas com risco conhecidamente controlável).
Em suma, risco gerenciado: nem inocente a ponto de achar tudo seguro, nem liberal a ponto de aceitar qualquer loucura.
Aspectos psicológicos do SSICK
O SSICK enfatiza bastante a consciência e o conhecimento, o que tem paralelos psicológicos interessantes.
Ao tratar “estar informado” como pilar, ele encoraja os participantes a refletirem sobre si mesmos: “Conheço meus limites? Compreendo por que quero esta prática? Sei como posso me sentir depois?”.
Ou seja, não é só informação técnica, mas autoconsciência. Isso promove autoconhecimento sexual e emocional – algo valorizado em terapia.
Também apoia a ideia de consentimento contínuo e processual. Documentos que explicam SSICK descrevem consentimento como “a escolha contínua de delegar autoridade ao outro dentro de limites comunicados, podendo revogar a qualquer tempo”
Isso reforça que, psicologicamente, ninguém abre mão de seu poder pessoal permanentemente. Mesmo numa relação 24/7 (dominação 24 horas), o submisso retém o direito de dizer não ou encerrar tudo, pois consentimento é inerentemente renovável e revogável.
Essa mensagem é crucial para evitar dinâmicas abusivas disfarçadas de BDSM – por ex., um Dominador não pode alegar “ah, mas você é meu escravo então não pode nunca rescindir” – pelo SSICK (e qualquer protocolo sério), isso seria falso, pois o consentimento é inalienável.
Em termos de confiança e negociação, o SSICK talvez traga mais diálogo ainda, já que há foco em informação. De fato, ele praticamente engloba: confiança (do SSC), comunicação (essencial para informar e consensuar), cuidado (buscar segurança) e responsabilidade (cada um se informar) – notadamente, são os mesmos valores que veremos nos “4Cs”.
Por isso, psicologicamente, quem adota SSICK tende a valorizar educação e transparência, o que cria ambientes emocionalmente mais seguros.
O bottom, sabendo que o top estudou e vai informá-lo de tudo, sente-se cuidado; o top, sabendo que o bottom entende os riscos e está ciente, sente-se respaldado para atuar.
Reduz-se o medo de “ser mal interpretado” ou de “ir longe demais sem querer”, porque tudo foi posto às claras. Após a cena, a filosofia SSICK igualmente apoiaria aftercare e conversa – já que cuidar do bem-estar físico (safe) e mental (sane) após a prática é parte do compromisso.
Se algum gatilho emocional foi acionado, os parceiros informados provavelmente já previram e têm estratégias de apoio.
Assim, do ponto de vista clínico, o SSICK representa um cenário muito saudável de interação sexual: adultos consensuais, informados, cuidadosos e conscientes – um modelo que dificilmente gera danos psicológicos duradouros e, ao contrário, pode favorecer crescimento pessoal, confiança e intimidade.
Críticas e limitações do SSICK
A principal crítica ao SSICK é ser excessivamente abrangente e teórico. Por juntar tudo, alguns argumentam que na prática ele não acrescenta nada de novo além de uma palavra e letra a mais que SSC.
Céticos podem dizer: “Bem, é claro que o consentimento deve ser informado; a gente já sabia disso. Colocar um I ali não muda muito.”
Porém, do ponto de vista educativo, muitos novatos realmente não se tocam da parte do “informado” até alguém frisar.
Então, para ensino, SSICK pode ser útil. Outra limitação é que, apesar do acrônimo inteligente, não pegou amplamente.
Muitas comunidades sequer conhecem o termo ou preferem manter SSC/RACK. Assim, alguém falando “sigo SSICK” pode receber olhares confusos.
Além disso, SSICK soando como “sick” (doente) em inglês pode ser infeliz para explicar a leigos – imagine dizer “somos sick!” – pode reforçar preconceitos de que BDSM é coisa de gente “doente”.
Também se pode dizer que SSICK, ao tentar cobrir tudo, não aborda diretamente algumas nuances.
Por exemplo, não menciona “cuidado” (care) explicitamente, nem “cautela” – coisas que os 4Cs abordam.
E mesmo “responsabilidade pessoal” não fica óbvia na sigla (embora “informado” pressuponha, não está dito).
Portanto, outros acrônimos surgiram para destacar valores específicos (como veremos a seguir).
Em resumo, o SSICK é bem-intencionado e cobre bem as bases, mas não se tornou tão popular a ponto de substituir SSC ou RACK, servindo mais como complemento didático.
Para quem o adota, entretanto, deixa claro que não basta ser seguro, são e consensual – tem que ter consciência e informação plena.
E isso, certamente, é um ponto valioso contra práticas irresponsáveis.
5. 4Cs – Cuidado, Comunicação, Consenso e Cautela (CCCC)
Definição e Origem do CCCC
4Cs ou CCCC é um protocolo relativamente novo, cujo nome em português fica “Cuidado, Comunicação, Consenso e Cautela”.
Foi proposto em 2014 por um grupo de pesquisadores liderados por Dominic J. Williams, em um artigo na revista científica Electronic Journal of Human Sexuality.
Enquanto SSC, RACK e PRICK nasceram dentro da comunidade BDSM, o 4Cs surgiu de uma reflexão acadêmica sobre as práticas de consentimento, buscando uma abordagem “mais holística” que englobasse aspectos emocionais que os outros acrônimos não enfatizavam.
Diferentemente das siglas anteriores, que focam muito em risco, o 4Cs coloca em primeiro plano valores relacionais e de bem-estar:
- Caring (cuidado)
- Communication (comunicação)
- Consent (consentimento)
- Caution (cautela).
Segundo Williams et al. (2014), a proposta do 4Cs era atualizar a estrutura de negociação do BDSM para o século XXI, dando destaque especial ao cuidado mútuo e à comunicação, sem esquecer do consentimento e da necessidade de cautela com riscos
Em suma, é um pacote que “envolve todos os acrônimos anteriores de forma simples, porém efetiva”
O 4Cs não contradiz SSC ou RACK, ele os envolve: você ainda deve ser seguro, sensato, etc., mas o norte são esses quatro Cs.
Alguns veem nele uma volta às bases, quase um “BDSM 101”, mas com a sabedoria adquirida de décadas: enfatizar comunicação e cuidado como fundamentais.
Práticas relacionadas do CCCC
O 4Cs não dita quais práticas podem ou não ser feitas – assim como RACK/PRICK, é neutro quanto ao conteúdo específico, mas dirige como elas devem ser conduzidas. Vamos decodificar cada “C” em termos práticos:
- Cuidado (Caring): Os participantes devem cuidar um do outro independentemente do motivo. Na prática, significa ter empatia e consideração pelo bem-estar do parceiro, antes, durante e depois da cena. Por exemplo, mesmo em um encontro casual de BDSM, espera-se que haja genuína preocupação: “Ele/ela está confortável? Não está passando mal? Está gostando? Precisa de algo?”. Se algo parecer errado, o princípio do cuidado manda parar e checar. Esse cuidado se manifesta também em aftercare: garantir que após a sessão intensa, ambos recebam atenção (seja um carinho, água, conversar, ou respeitar a necessidade do outro). Ou seja, tratar a pessoa como pessoa, não só um objeto de fetiche.
- Comunicação (Communication): Este talvez seja o mais autoexplicativo, mas abrange comunicação antes, durante e depois. Antes: muita conversa sobre desejos, limites, expectativas, sinais de alerta. Durante: manter canais abertos – pode ser verbal (check-ins tipo “tudo bem aí?”) ou não-verbal combinado (um gesto, três apertadas na mão significando “estou no limite”, por exemplo). Se alguém estiver amordaçado, providenciar um safeword não verbal (como deixar cair um objeto da mão). Depois: dialogar sobre como foi, o que funcionou ou não. A comunicação é considerada pelo 4Cs o pilar básico que às vezes é negligenciado – muitos problemas vêm de falta de comunicação clara. Portanto, este “C” enfatiza que “uma cena só é uma cena se todos puderem se comunicar de alguma forma”. Isso também inclui transparência: não esconder desconfortos, não presumir que o outro lê mentes.
- Consenso (Consent): Novamente, básico porém indispensável. Aqui o ênfase está em verificar que tudo é mutuamente consentido e permanece assim. O 4Cs incorpora a ideia de consentimento contínuo: não é porque algo foi combinado antes que não precise de confirmação durante. E inclui sensibilidade para interromper mesmo antes de um safeword se notar que o parceiro claramente não está bem, ainda que não tenha conseguido pedir para parar. Ou seja, consentimento não é só “assinar embaixo”; é estar atento para manter o consentimento real-time. Também destaca que consentimento deve ser específico e reversível (consonante com conceitos como FRIES e CRISP, acrônimos do consentimento em geral). Em muitos aspectos, esse “C” do 4Cs carrega consigo tudo que SSC/RACK/PRICK já dizem sobre consentimento informado e tal – pois sem consentimento mútuo nada do resto importa.
- Cautela (Caution): Este “C” cobre a parte de risco: é basicamente a noção de risk awareness expressa como cautela. Significa os participantes estarem cientes dos riscos gerados pela cena e agirem com prudência. Não nega que haja risco, mas incita a serem cautelosos: planejar, não se lançar de forma imprudente. Abrange, por exemplo, inspecionar os equipamentos antes de usar, ter um plano B caso algo dê errado, não ultrapassar limites físicos de segurança (como saber até onde o braço dobra para não deslocar uma junta em bondage, etc.). A cautela funciona em sinergia com cuidado e comunicação – quem é cauteloso vai se comunicar mais e cuidar mais, e vice-versa.
Seguindo os 4Cs, qualquer prática – das leves às extremas – deverá respeitar esses princípios. Se alguém deseja fazer um jogo extremo, digamos edge play com lâminas e sangue, eles ainda assim devem: cuidar (esterilizar, evitar infecções, dar suporte emocional), comunicar (cada corte sendo monitorado, feedback constante), consensar (talvez até em etapas: consentimento para o primeiro contato, depois para prosseguir, etc.), e cautela (limitar profundidade, ter kit de primeiros socorros pronto, etc.).
Se qualquer “C” faltar, segundo essa filosofia, o ato não seria eticamente BDSM e sim potencialmente abuso ou negligência.
Nível de risco do CCCC
O 4Cs não estabelece um nível de risco intrínseco, mas pela ênfase em cautela e cuidado, tende a reduzir o risco das práticas.
Assim, diríamos que quem segue 4Cs busca manter o risco o mais baixo possível dentro do contexto. Porém, diferente do SSC que talvez evitasse certas práticas por não serem “seguras”, o 4Cs permite-as contanto que a cautela seja extrema e os outros Cs também presentes.
Então, ele não é tão restritivo quanto o SSC no conteúdo, mas é exigente quanto à forma de condução. Em suma, “pode fazer, mas faça com todo cuidado e comunicação do mundo”.
Isso posiciona o 4Cs em termos de tolerância de risco de forma semelhante ao RACK/PRICK, mas com um filtro: se não conseguir cuidar/comunicar/cautelar adequadamente uma prática muito perigosa, melhor não fazer.
Logo, na prática, pessoas adeptas do 4Cs talvez optem por não realizar as atividades de risco mais elevadíssimo, a menos que tenham meios claros de mitigá-las.
Como protocolo, podemos considerá-lo de risco baixo a moderado, dependendo de como for aplicado. De todo modo, o termo cautela no nome sugere que imprudência não cabe – então risco deliberado e “insano” certamente não condiz com 4Cs.
Aspectos psicológicos do CCCC
O 4Cs se destaca por introduzir formalmente o cuidado (caring), um elemento emocional/ético, como premissa. Isso reconhece que mesmo em relações de dominação e submissão, deve haver compaixão e respeito.
Para a psicologia, isso é essencial: um cenário BDSM sem cuidado mútuo pode facilmente degradar em trauma. Ao enfatizar cuidado e comunicação, o 4Cs promove um ambiente onde as necessidades emocionais têm tanta importância quanto a excitação física.
Um dominador, por exemplo, não é apenas um técnico que aplica chicotadas com segurança – ele também deve demonstrar empatia pelo submisso, criando um espaço de confiança.
E o submisso, por sua vez, também cuida do dominador (ex.: respeitando limites do top, dando feedback sincero para que o top não tenha remorso depois, cuidando dele no aftercare também).
Essa reciprocidade de cuidado combate aquele estereótipo de que BDSM é “cruel” ou desumano. Pelo contrário, muitas vezes há mais diálogo e carinho entre praticantes BDSM seguindo essas diretrizes do que em relações sexuais “baunilha” em que ninguém conversa sobre nada.
O foco em comunicação obviamente tem benefícios psicológicos: diminui mal-entendidos, ansiedade, e reforça a autonomia de cada um – todos se sentem ouvidos e livres para se expressar.
Isso é especialmente importante se considerarmos que cenas BDSM podem trazer à tona emoções intensas (desde euforia até medo ou tristeza).
Com boa comunicação e cuidado, essas emoções são processadas de modo positivo. A cautela também ajuda na segurança emocional; sabendo que seu parceiro é cauteloso, você se sente seguro em se soltar mais na cena.
Assim, a entrega (submissão) ou o controle (dominação) podem acontecer de forma mais genuína sem aquele receio lá no fundo.
É interessante notar que o 4Cs não menciona diretamente “seguro” ou “são”, mas “cautela” e “comunicação” cobrem esses aspectos.
Isso torna o tom menos clínico e mais humano-relacional.
Alguns profissionais de saúde mental preferem usar a linguagem do 4Cs justamente por tirar o peso de julgamento (“são/insano”) e colocar em termos de relacionamento.
Inclusive, o termo surgiu em artigo acadêmico, o que reflete uma preocupação científica em como comunicar esses princípios de modo mais inclusivo.
Por exemplo, Williams et al. argumentaram que “seguro e são” eram conceitos complicados e quiseram enfatizar cuidado e cautela que soam mais práticos.
Críticas e limitações do CCCC
Uma crítica que aparece é que o 4Cs é bastante óbvio – quem em boa consciência seria contra cuidado ou comunicação?
Então, para alguns experientes, ele soou como “ensinar padre a rezar missa”. Entretanto, às vezes o óbvio precisa ser dito, pois na prática nem todo mundo exerce cuidado/comunicação adequados.
Outra crítica: assim como há sobreposição entre SSC/RACK, o 4Cs parece sobrepor quase tudo que já existia.
Defensores respondem que ele sintetiza bem e pode ser mais fácil de aceitar por pessoas de fora, por não mencionar “risco” ou “insano” abertamente.
Uma possível limitação é que “cuidado” pode ser interpretado de formas diferentes – alguém pode alegar que estava cuidando do parceiro ao ignorar o safeword porque “sabia que ele podia aguentar mais e queria que tivesse a melhor experiência” – claramente uma racionalização ruim, mas que distorce o conceito de cuidado.
Ou seja, como qualquer princípio, depende de boa-fé. Também, focar em cuidado mútuo pode ser visto como difícil em relações mais fetichistas anônimas – por exemplo, em um play party onde duas pessoas que mal se conhecem decidem interagir, pode soar estranho pedir “cuide profundamente dessa pessoa desconhecida”.
Mas o 4Cs diria que mesmo assim deve haver um cuidado básico (como quem cuida de alguém que desmaia na sua frente, por humanidade).
Um ponto prático: 4Cs não ganhou tanta popularidade global ainda. Em comunidades anglófonas e brasileiras mais engajadas, sim, há menção. A Wikipédia em português inclusive tem artigo sobre CCCC (embora muito curto).
Porém, não atingiu o mesmo nível de presença que SSC ou RACK. Isso pode limitar seu reconhecimento.
Finalmente, alguns veteranos do BDSM (especialmente da “velha guarda”) têm seu próprio código semelhante que antecede o 4Cs – conhecido como CCC (Committed, Compassionate, Consensual) ou variantes como “SSC com bom senso” – e podem ver o 4Cs como rebranding do que já faziam intuitivamente
De qualquer forma, não se pode objetar aos méritos do 4Cs: se todos os praticantes seguissem Cuidado, Comunicação, Consenso e Cautela, muitos problemas de segurança e emocionais seriam evitados, e é essa a mensagem que importa.
6. BORK – Balls Out Risky Kink (“Kink Arriscado ao Extremo”)
Observação: o BORK está aqui presente apenas para ilustrar que este conceito existe. Não considero que este seja um protocolo de segurança, seja física ou psicologicamente falando. Porém, como psicólogo devo estar ciente que, em minha prática, posso deparar com pessoas que estejam praticando algo assim ou em vias de, me prontificando a adotar as melhores posturas clinicamente falando, do ponto de vista ético e legal.
Definição e Origem do BORK
Balls Out Risky Kink (BORK) é um acrônimo coloquial e raro, que surgiu mais como gíria do que protocolo formal.
Em tradução livre, significa algo como “Kink de Risco Total” ou “Kink de risco escancarado” – a expressão “balls out” em inglês denota fazer algo no máximo, sem restrição (imagine acelerador no talo, ou literalmente “com tudo para fora”).
O BORK descreve uma filosofia extremamente permissiva: estaria além do RACK, aceitando até riscos gravíssimos, inclusive a possibilidade de ferimentos sérios ou morte, desde que consensuado.
É praticamente a personificação do edge play levado ao limite absoluto.
Importante destacar que o BORK não é amplamente adotado ou endossado pela comunidade; aparece mais em debates hipotéticos ou para ilustrar um ponto.
Por exemplo, em uma resenha de livro na Alemanha, a autora do comentário critica as escritoras por equipararem SSC a BORK, dizendo: “afirmar que Safe, Sane, Consensual é só outro nome para Balls Out Risky Kink é como dizer que preto é igual a branco” ou seja, SSC e BORK seriam polos opostos. Ele continua mencionando que supostamente há quem “brinque de acordo com BORK” aceitando que no edge play algo realmente ruim pode acontecer (até morte), embora o autor duvide que alguém assim exista de verdade. Essa citação evidencia a reputação do BORK: seria um “nível lenda” de risco, onde as pessoas conscientemente se expõem a danos possivelmente irreparáveis.
Não há registro claro de quem cunhou BORK; possivelmente nasceu na internet, talvez inicialmente como humor negro ou para testar limites conceituais.
Por exemplo, um praticante escreveu: “é onde o PRICK encontra o BORK: Balls Out Risky Kink. Eu me excito com isso, mas provavelmente não sou muito são quanto ao dungeon”, reconhecendo com tom casual que essa postura beira o insano.
Assim, BORK aparece quase como gíria pessoal de alguns para descrever seu estilo radical. Não existem grupos ou eventos oficiais “BORK”.
Práticas relacionadas do BORK
Se pensarmos nas práticas mais arriscadas possíveis no BDSM, elas caberiam sob BORK.
Exemplos extremos: asfixia até a pessoa realmente desmaiar, jogos com arma de fogo carregada apontada ao parceiro, uso de substâncias perigosas, torturas consensuais que deixam ferimentos graves, bloodplay sem cuidados (risco de infecção), entre outros chamados “práticas de risco excepcional”.
Uma expressão do meio kink é RACK extremo; poderíamos dizer que BORK é isso.
Também entra aqui coisas como edge play sem preparação adequada – por escolha deliberada ou fetiche pelo perigo.
Por exemplo, duas pessoas decidem fazer um role-play de sequestro muito realista, sem safeword, onde o “sequestrador” vai além dos limites comuns e o “cativo” aceita que pode acabar seriamente machucado se as coisas saírem do controle.
Ou alguém praticando suspensão pelo pescoço, correndo risco real de enforcamento fatal – ninguém sensato recomendaria, mas sob BORK, se ambos concordam com o risco mortal, isso seria abarcado.
Em síntese, práticas onde o risco não é apenas possível, mas bem provável e severo.
É válido frisar que muitas dessas práticas flertam com autolesão e impulsos destrutivos, e por isso a maioria dentro da comunidade BDSM as rejeita.
BORK é quase um termo tabu – justamente porque arriscar morte é algo que extrapola o propósito do BDSM para quase um pacto suicida ou uma roleta-russa sexual.
Entretanto, existem documentações de acidentes fatais durante BDSM (geralmente por asfixia mal feita); a diferença é que sob BORK, a atitude seria “sabíamos que poderíamos morrer e tudo bem”.
Nível de risco do BORK
Disparado, o mais alto da escala. Se o SSC era a filosofia do risco mínimo, BORK é a filosofia do risco máximo assumido.
Poderíamos classificá-lo como extremo. Basicamente, há aceitação de que “pode dar muito errado e nós aceitamos isso”.
Vale dizer que mesmo no BORK, espera-se que as pessoas não queiram realmente que algo trágico ocorra – elas apenas aceitam essa possibilidade em busca de emoções intensas.
Então, não confundir com desejo de morte (não é necrofilia nem instinto suicida necessariamente), mas sim um nível altíssimo de adrenalina e exploração de limites.
Alguns consideram que BORK nem deveria ser chamado de “protocolo de segurança”, pois vai contra a noção de segurança; seria quase um anti-protocolo, uma postura de “vale tudo” no BDSM.
Logo, se falamos em nível de risco, ele ultrapassa o vermelho.
Para fins de comparação, se SSC é verde (risco baixo), RACK/PRICK amarelo (risco moderado sob controle), BORK seria preto ou vermelho piscante com sirenes de autodestruição iminente tocando: risco catastrófico consentido.
Aspectos psicológicos do BORK
Aqui entramos num terreno complexo.
O perfil psicológico de alguém adepto de BORK pode ser variado: pode ser simplesmente um buscador de fortes emoções (thrill-seeker), semelhante a quem faz esportes extremos e salta de penhascos (mas quem faz isso costuma controlar os riscos) – mas levando isso para a sexualidade.
Pode ser alguém com certa desconexão sobre autopreservação, ou até questões de autoestima (por exemplo, sentir que “merece” ser machucado gravemente).
Ou pode ser fruto de uma confiança e intimidade tão absurdas entre parceiros que eles de fato entregam a vida nas mãos um do outro como “prova” definitiva – algo extremamente raro e questionável.
Psicologicamente, participar de algo BORK implica lidar com medo real.
Diferente de um medo lúdico (que existe mesmo no BDSM seguro, mas com rede de segurança), aqui a mente sabe que a rede quase não existe.
Isso pode liberar quantidades enormes de adrenalina, e se a experiência terminar bem, gerar uma euforia intensa – “sobrevivemos juntos” – quase viciante.
Por outro lado, se algo sai do planejado e alguém se fere seriamente, o trauma pode ser devastador para ambos.
Imagine um dominador acidentalmente causando a morte do submisso (caso extremo de BORK): mesmo que ele soubesse do risco e tivesse consentimento, lidar com essa consequência é terrível.
Haverá culpa, luto, possíveis acusações legais e auto-recriminação. Quem sobrevive a um parceiro que morreu no BDSM geralmente enfrenta um abalo psicológico enorme, possivelmente TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) ou depressão severa – há casos documentados de tops que nunca se recuperaram emocionalmente e abandonaram a cena completamente.
Ou seja, o preço do erro no BORK é alto demais para a psique.
Mesmo sem fatalidades, participar de violência consensual extrema pode deixar marcas emocionais difíceis.
Alguns podem confundir essa busca por extremo com tendências autodestrutivas ou de reviver traumas – por exemplo, uma vítima de abuso passado querendo recriar situações de perigo para ter um senso de controle, mas na verdade retraumatizando-se.
O praticante do BORK citado anteriormente mencionou “brinco com meu PTSD, engajo com meus demônios, e não tenho vergonha de admitir”, reconhecendo que ele usa o BDSM para reencenar traumas e que isso não é para qualquer um justamente pelo risco de retraumatização
Ou seja, ele próprio admite que talvez não seja “muito são” nesse aspecto. Isso reforça a noção de que BORK cruza uma linha em que mesmo a sanidade e bem-estar psicológicos ficam em jogo.
Críticas e limitações do BORK
A maioria na comunidade BDSM não recomenda nem valida o BORK.
A crítica principal é evidente: colocar vidas em perigo real não condiz com o objetivo do BDSM que é prazer mútuo.
Afinal, se alguém morre ou fica seriamente incapacitado para o resto da vida, cadê o benefício?
Muitos veem o BORK como irresponsabilidade pura, ou coisa de indivíduos que talvez precisem de ajuda psicológica mais do que de uma sessão pesada.
Há também o aspecto ético-legal: se uma prática tem probabilidade significativa de causar danos graves, alguns questionam se o consentimento pode ser legítimo – entra um dilema filosófico parecido com casos de pessoas que consentem em duelo até a morte ou coisas assim.
A sociedade e as leis tendem a proteger a vida, mesmo contra a vontade do indivíduo (daí suicídio assistido ser ilegal em muitos lugares).
Então, dentro e fora da comunidade, BORK é visto com extrema reserva. Tanto que o BORK permanece marginal; poucos sequer sabem da sigla.
É comum que ele seja citado apenas para fins de debate ou humor ácido, do tipo “ah, isso que você quer fazer já é quase BORK hein…”.
Aliás, consentir em fazer uma cena supostamente SSC com alguém embriagado, mesmo uma cena leve, certamente, é BORK.
Em resumo, o BORK é limitado por sua própria natureza: uma vez que tudo pode acontecer, não há muitas “regras” a dissertar – exceto que se você realmente seguir essa linha, estará fora dos suportes habituais.
Nenhum dungeon comercial ou evento público permitiria isso, por exemplo. É algo subterrâneo e particular.
Em termos de legado, o BORK serve mais como alerta do que não fazer.
Como aquele ponto além do qual praticamente todos concordam que se transforma em insensatez.
No entanto, o simples fato de existir o termo traz à luz discussões importantes: até onde vai o consentimento?
Qual o limite da busca por prazer via dor/perigo?
Essas são questões que psicólogos, filósofos e juristas ponderam. Inclusive, casos judiciais como o “Caso Spanner” no Reino Unido envolveram pessoas ferindo-se consensualmente e a corte decidindo que aquele nível de lesão não podia ser permitido, condenando-os – o que toca exatamente no “limite do consentimento”, linha onde BORK certamente está além.
Portanto, criticamente, o BORK testa e ultrapassa limites éticos e legais, e por isso é amplamente rejeitado. Em palavras simples: se SSC é não ir além do amarelo, e RACK/PRICK vai até o vermelho controlado, BORK fura o sinal vermelho de vez. E quase todo mundo concorda que passar sinal vermelho é má ideia.
Comparação dos Protocolos de Segurança no BDSM
Protocolo | Significado do Acrônimo | Abordagem de Risco | Enfoque Principal |
---|---|---|---|
SSC | Safe, Sane and Consensual – Seguro, São e Consensual | Baixo risco – só práticas consideradas seguras e sensatas; evitar perigo significativo. | Segurança física, bom senso e consentimento mútuo básico. (Minimizar riscos; distinguir BDSM de violência) |
4Cs (CCCC) | Caring, Communication, Consent, Caution – Cuidado, Comunicação, Consenso e Cautela | Baixo a moderado – risco bem gerenciado com cautela, mas não proíbe práticas se houver muito cuidado. | Cuidado mútuo e comunicação ampla, consentimento contínuo e prudência. (Valores relacionais; bem-estar emocional e segurança combinados) |
SSICK | Safe, Sane, Informed, Consensual, Kink – Seguro, São, Informado e Consensual no Kink | Baixo a moderado – procura minimizar riscos mas aceita riscos informados de forma consciente. | Combinar segurança e sensatez com informação completa. (Checklist abrangente: seguro + informado) |
RACK | Risk-Aware Consensual Kink – Kink Consensual com Risco Conhecido | Moderado a alto – aceita práticas de maior risco desde que todos estejam cientes e consintam. | Consciência e discussão dos riscos reais; consentimento informado. (Reconhecer que “seguro absoluto” não existe) |
PRICK | Personal Responsibility, Informed Consensual Kink – Responsabilidade Pessoal e Kink Informado Consensual | Moderado a alto – similar ao RACK, possibilita risco, porém com responsabilidade individual reforçada. | Responsabilização pessoal de cada participante; exigência de preparo e conhecimento. (Cada um cuida de si e do outro eticamente) |
BORK | Balls Out Risky Kink – “Kink de Risco Total” | Extremo – tolera riscos gravíssimos, inclusive morte, se consensual. | Busca de adrenalina máxima; consentimento mesmo diante de perigo severo. (Postura radical e controversa; fora do mainstream) |
(Observação: A colocação “menos arriscado vs. mais arriscado” refere-se à filosofia de tolerância ao risco de cada protocolo, e não necessariamente à prática de cada indivíduo. Mesmo sob SSC podem ocorrer acidentes, e mesmo adeptos de RACK podem conduzir cenas extremamente seguras. A tabela reflete a intenção geral de cada acrônimo.)
Aspectos Legais do BDSM no Brasil
Mesmo seguindo rigorosamente os protocolos de segurança acima – garantindo consentimento, saneamento, cuidado, etc. – é bom entender que legalmente o BDSM pode não ser completamente resguardado.
No Brasil, não há uma lei específica que autorize ou regulamente práticas sadomasoquistas consensuais.
Assim, aplica-se a legislação penal comum em casos de lesão ou violência. Isso gera uma situação delicada: até que ponto o consentimento da “vítima” (no caso, participante consensual) pode excluir crime em práticas BDSM?
O Código Penal Brasileiro tipifica a lesão corporal (art. 129) como crime, independentemente de consentimento.
Em geral, lesões leves são de ação penal condicionada à representação (ou seja, dependem da vítima querer processar) e podem até ser transformadas em pena de multa, enquanto lesões graves ou gravíssimas são de ação penal pública incondicionada (o Estado processa, havendo denúncia).
Mesmo com consentimento, pode haver inquérito, SIM
Na prática, isso significa que se uma sessão BDSM resultar em ferimentos graves (ex: fraturas, cortes profundos, danos permanentes) e isso chegar ao conhecimento das autoridades, não importa ter havido consentimento prévio: poderá haver inquérito e processo criminal contra quem causou a lesão
A jurisprudência brasileira majoritária entende que o consentimento do ofendido não é válido quando há lesão grave ou pior, pois a integridade física e a dignidade da pessoa humana são bens jurídicos indisponíveis, protegidos pela Constituição (art. 1º, III e art. 5º, III, CF)
Em outras palavras, não se pode consentir em ser gravemente ferido – a lei presume que a pessoa não pode dispor tão amplamente do próprio corpo a esse ponto, e a vontade dela cede lugar à tutela penal do bem-estar físico e mental
Para lesões leves, há um pouco mais de flexibilidade: doutrina e julgados apontam que o chamado “consentimento do ofendido” pode funcionar como causa supralegal de exclusão da ilicitude em certos casos
Ou seja, se a lesão foi leve e realmente fruto de uma atividade consentida (esportiva, médica, sexual), um juiz pode considerar que não houve crime por falta de antijuridicidade – seria equiparável a um sparring de artes marciais, por exemplo.
Alternativamente, o juiz pode optar por aplicar o Art. 129, §5º do CP, substituindo a pena por multa, reconhecendo que houve consentimento e menor gravidade
No contexto BDSM, isso significaria que se um participante sofreu apenas hematomas ou cortes superficiais consensualmente, e isso chegar às autoridades, existe a chance do caso não prosseguir criminalmente ou terminar em sanção branda – desde que fique claro que houve consentimento válido e nenhum interesse público em punir (afinal, sem vítima que reclame, não há porquê acionar severamente o sistema penal).
Entretanto, tudo depende das circunstâncias. Se a pessoa consente, mas durante o ato muda de ideia e o parceiro ignora (por exemplo, o Dominador não respeita o safeword e causa dano), aí já não há mais consentimento efetivo – configura-se agressão ou até estupro, dependendo do caso.
Importante: consentimento válido no BDSM só existe até o ponto em que é mantido; a partir que um “não” ou safeword é dito e ignorado, qualquer ato subsequente é violência real.
E juridicamente, mesmo que não haja safeword explícito, se for demonstrado que a vítima não queria mais e o outro continuou, responde por crime normalmente.
Sobre menores: nem pense
Outro ponto: menores de 18 anos ou pessoas incapazes não podem consentir em práticas sexuais aos olhos da lei. Então BDSM é, por definição, somente entre adultos capazes.
Qualquer cenário envolvendo menor seria crime grave (estupro de vulnerável, art. 217-A CP, ou corrupção de menores). Isso a comunidade BDSM séria já reforça: limite de idade é absoluto, e se alguém está inconsciente ou incapacitado (drogado, alcoolizado demais), não se prossegue – porque consentimento inválido configura crime (vide decisão da Suprema Corte do Canadá citando que não se pode consentir previamente a algo para acontecer quando se está inconsciente.
No Brasil, não há muitos precedentes publicados sobre BDSM em si. O assunto ainda é um tabu e geralmente é tratado de forma discreta.
Mas a lógica seguida tende a espelhar a de outros países civilizados: lesões leves consensuais podem ser toleradas, lesões graves não.
Por exemplo, na Alemanha existe a cláusula “princípio da boa ordem” (§228 do Código Penal alemão) que só permite lesão consentida se não contrariar os bons costumes – e o tribunal federal alemão decidiu que práticas sadomasoquistas não são necessariamente imorais por si, mas cada caso depende da gravidade da lesão
No Brasil, usamos a ideia de dignidade e disponibilidade do corpo: até certo ponto, a pessoa pode dispor (como dispomos no esporte, tatuagem, etc.), além disso não. Em um artigo jurídico de 2018, o autor conclui que nas práticas SM, “o legislador escolheu pela indisponibilidade da integridade física do indivíduo”, então mesmo com consentimento, lesão grave é criminosa, e no máximo se admitiria consentimento para excluir ilicitude em casos leves.
Equipes de saúde devem notificar suspeitas de violência doméstica
Um risco legal concreto: se uma pessoa se machuca seriamente durante BDSM e busca atendimento médico, os profissionais de saúde podem ser obrigados a notificar as autoridades se suspeitarem de violência doméstica ou agressão.
Mesmo explicando que “foi consensual”, nem todos compreenderão; e uma vez notificado, o caso pode seguir para investigação.
Daí a importância de evitar chegar a esse ponto – o ideal é não lesionar gravemente.
Além disso, se houver morte acidental em contexto BDSM, o sobrevivente provavelmente enfrentará processo por homicídio culposo ou até doloso eventual.
E a Lei da Tortura?
Há também a Lei de Tortura (9.455/97) – alguns perguntam se poderia enquadrar BDSM. A resposta é geralmente não, pois a tortura exige intenção de causar sofrimento para obter algo, punir ou discriminar, e presume vítima não consentindo.
BDSM consensual, por definição, não se encaixa no elemento “mediante violência ou grave ameaça” para tal fim
Se for consensual, não é tortura. Porém, se alguém extrapola limites e mantém o outro amarrado sofrendo contra a vontade, aí deixa de ser BDSM e vira crime – possivelmente tortura ou sequestro conforme o caso.
No contexto brasileiro, vale lembrar também que fotos, vídeos ou mesmo relatos de práticas BDSM podem ser mal interpretados.
BDSM no âmbito cível
Já houve casos de pais em disputa de custódia usando inclinações BDSM do ex-cônjuge contra ele, alegando periculosidade moral.
Em 2006, um tribunal alemão negou guarda a uma mãe por ela ser ativa no sadomasoquismo (depois revertido em instância superior).
No Brasil, não duvida-se que algo assim possa ser alegado, embora não seja juridicamente fundamentado. Portanto, discrição é recomendada: não por vergonha, mas por segurança legal e social, já que o BDSM ainda sofre preconceito.
Em suma, juridicamente no Brasil: Consensualidade não é salvo-conduto irrestrito. Especialmente se ocorrerem lesões graves, o Estado pode intervir e considerar crime
A melhor prática é prevenir ao máximo qualquer dano sério, documentar consentimentos (ainda que contratos BDSM não tenham força legal para permitir lesão, servem como evidência de boa-fé) e, se possível, manter a vida privada longe de interpretações equivocadas de terceiros.
Do ponto de vista clínico-psicológico
Do ponto de vista clínico e ético, um psicólogo ciente dessas questões legais aconselharia seus pacientes praticantes de BDSM a terem cuidado e conhecimento das implicações.
O terapeuta também deve diferenciar claramente consensualidade de possível violência – por exemplo, se um paciente relata que seu parceiro BDSM ignora safewords ou ultrapassa limites regularmente, isso deve ser tratado como situação de risco/abuso, não importando o rótulo BDSM.
Em contrapartida, se tudo está sendo conduzido dentro dos protocolos, o profissional deve compreender e não criminalizar mentalmente algo que está no âmbito da vida privada consensual.
Não há jurisprudência brasileira consolidada sobre o BDSM
Por fim, é pertinente mencionar que não há, até onde se sabe, jurisprudência brasileira consolidada específica sobre BDSM. Cada caso, se chegar aos tribunais, será avaliado em suas particularidades.
Mas a regra geral advinda do Direito Penal é clara: lesão voluntária, ainda que consentida, pode ser punível – a linha divisória é o grau de lesão e o entendimento do juiz sobre a validade do consentimento naquele contexto
Portanto, a comunidade costuma dizer: “SSC também significa São e Consensual para evitar problemas legais – não dê motivos para um promotor te chamar de criminoso.” E “Risk-aware” também inclui ciente do risco legal.
Esse é um cuidado extra que quem pratica no Brasil deve ter.
Finalmentes
Ao longo deste artigo, vimos que os protocolos SSC, RACK, PRICK, SSICK, 4Cs, entre outros, são tentativas da comunidade BDSM de autorregular-se, criando um ambiente onde o prazer alternativo possa florescer com segurança, sanidade e consentimento.
Cada acrônimo surgiu em determinado contexto histórico para atender a necessidades: SSC estabeleceu os alicerces éticos, RACK e PRICK refinaram a compreensão de risco e responsabilidade, SSICK e 4Cs buscaram integrar os aprendizados e enfatizar valores fundamentais como informação, comunicação e cuidado.
Mais do que siglas, eles representam uma cultura de cuidado, respeito e autonomia dentro do BDSM, desmistificando a ideia de que tudo seria caos e sofrimento. Pelo contrário, há muita estrutura e acordo por trás de práticas que, para quem olha de fora sem informação, poderiam parecer perigosas ou “loucas”.
A psicologia deve entender
No contexto da psicologia clínica, compreender esses protocolos é essencial para oferecer um atendimento livre de preconceitos e efetivo a pessoas do meio BDSM.
Saber que um paciente segue SSC ou RACK, por exemplo, já indica que ele tem preocupações éticas e de segurança – não é alguém “fora de controle”, mas sim alguém operando dentro de um código específico.
Um profissional que conheça termos como sub space, subdrop, aftercare, safeword e essas siglas demonstra familiaridade e acolhimento, o que facilita a aliança terapêutica.
Além disso, muitos praticantes podem ter internalizado vergonha ou dúvidas sobre suas preferências; ao mostrar conhecimento dos frameworks positivos do BDSM, o terapeuta valida que sexualidades alternativas podem ser saudáveis quando bem conduzidas.
Esse reconhecimento por si só pode ser terapêutico.
Eticamente, ao comunicar que estamos prontos para atender esse público, devemos fazê-lo de forma não sensacionalista, nem julgadora, e focada no bem-estar do paciente.
Significa reconhecer que, assim como em relacionamentos “comuns”, relações BDSM podem ter dinâmicas positivas ou tóxicas – caberá avaliar isso dentro do contexto fornecido pelas próprias ferramentas da comunidade (por exemplo, se o paciente relata ansiedade porque se sente pressionado a ir além do que gostaria, talvez haja um desrespeito ao SSC/RACK na relação dele e isso é algo a trabalhar em terapia).
Da mesma forma, questões de autoestima, identidade e expressão que muitos praticantes enfrentam (por viverem uma sexualidade ainda marginalizada) precisam de escuta empática e informada.
Protocolos de segurança no BDSM são um tema riquíssimo
Em conclusão, protocolos de segurança no BDSM são um tópico riquíssimo que abrange dimensões físicas, psicológicas, sociais, éticas e legais.
Para o público leigo, esperamos ter esclarecido que por trás de siglas peculiares há conceitos sérios de segurança e consentimento, mostrando que o BDSM responsável é pautado por regras e cuidados – “tão seguro e ético quanto possível, ainda que não livre de riscos”.
E para aqueles que se identificam com sexualidades alternativas, a mensagem é: você não está só, há todo um saber comunitário e profissional sendo construído para garantir que seu prazer possa conviver com sua saúde física e mental.
Seguindo protocolos como SSC, RACK, PRICK, SSICK ou 4Cs, e respeitando os limites legais, o BDSM pode ser vivido de forma plena, consensual e até mesmo transformadora, trazendo crescimento pessoal e relacional.
Como em qualquer aspecto da sexualidade humana, informação e respeito são as chaves – e isso, independente da sigla favorita de cada um, é o ponto em comum de todos esses protocolos.
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