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Luta antimanicomial: o retrocesso das comunidades terapêuticas

    O horror começa a retornar ao cuidado dado às pessoas que precisam ser atendidas por questões com a saúde mental. Talvez nunca tenha ido embora. Isso ocorre após os muitos avanços conquistados pela Luta Antimanicomial.

    Agora mesmo a Universidade de Brasília identificou 251 violações de direitos em comunidades terapêuticas.

    Essas pessoas atingidas não se encaixam na por alguma razão. Ou, melhor dizendo, a oportunidade de se encaixar não é oferecida a elas.

    Obviamente, quando colocamos a questão unicamente no polo da saúde, esquecemos que o problema é antes de tudo social. E, as vítimas, de outra forma, seriam perfeitamente saudáveis se, simplesmente, fossem incluídas.

    Tem gente lucrando e muito com essa estrutura. Veja a seguir.

    Luta antimanicomial: ambientes que se parecem com prisões para esconder indivíduos que não são "produtivos"

    Contra o que a luta antimanicomial luta

    Em Cajamar (SP), 75 pacientes viviam em condições degradantes dentro da Comunidade Terapêutica Esdras, submetidos a torturas e maus-tratos. Em 2023, os proprietários da instituição foram condenados a 31 anos de prisão. Investigações revelaram a brutal realidade (SinPsi, 2023). 

    Esse caso, infelizmente, não é isolado. Ele levanta sérias questões sobre as comunidades terapêuticas (CTs) no Brasil. Apesar de receberem significativo financiamento público, essas CTs são frequentemente palco de violações de direitos humanos.

    Segundo a mais abrangente sobre o perfil das CTs no Brasil em 2017. Existiam cerca de 2 mil comunidades terapêuticas no país. A maioria estava localizada na região Sudeste (46%) e em zonas rurais (74,3%). A pesquisa foi conduzida pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)

    Embora tenham surgido no final dos anos 1960, 79% delas foram fundadas entre 1996 e 2015.

    82% das CTs são religiosas

    O estudo também revelou que 82% das CTs declararam ter orientação religiosa, sendo 47% evangélicas ou protestantes e 27% católicas.

    Curiosamente, mesmo entre as que se dizem não religiosas, 95% realizam algum tipo de prática espiritual. Algo que aquela sua tia que diz que depressão é falta de deus no coração certamente iria adorar.

    Entre 2017 e 2020, essas instituições receberam cerca de R$ 560 milhões em recursos públicos. Esses recursos somam repasses federais, estaduais e municipais (Frente da Saúde Mental, 2022).

    Além disso, a Lei Complementar nº 187/2021, foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Ela garantiu às CTs a imunidade tributária. Isso configurou um tipo de financiamento indireto (Condege, 2023). 

    Conversão religiosa forçada

    Essa expressiva destinação de recursos é alarmante. Ela contrasta com as graves denúncias envolvendo essas instituições. Isso inclui relatos de cárcere privado. Há também conversão religiosa forçada. Há análogo à escravidão e restrição ao contato com familiares (MPF, 2024). 

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    Enquanto isso, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi projetada para oferecer cuidado em liberdade. No entanto, ela sofre com a falta de recursos. Essa situação compromete a eficácia de políticas que respeitam os direitos humanos. 

    Diante desse cenário, é preciso questionar se o modelo das CTs é uma solução adequada. Este modelo é marcado por violações e práticas excludentes. Devemos avaliar se esses recursos não deveriam fortalecer políticas públicas que priorizem a e a dignidade.

    De fato, as comunidades terapêuticas têm sido alvo de fiscalização intensiva devido a graves denúncias de violações de direitos humanos. Durante uma ação nacional conduzida pelo Ministério Público Federal (MPF) e outras entidades, verificou-se a ocorrência de internações forçadas.

    Restrições à liberdade e trabalho análogo ao escravagista

    Houve também restrições arbitrárias à liberdade. Além disso, foi identificada a imposição de trabalho não remunerado e condições precárias de higiene e alimentação. Imposição de trabalho não remunerado e condições precárias de higiene e alimentação

    Essa fiscalização revelou que muitas dessas instituições não apenas falham em cumprir seu papel de assistência. Elas também operam em lógicas de exclusão e controle. Essas lógicas perpetuam a violação de direitos básicos dos internos.

    As conclusões da inspeção reforçam as críticas ao modelo das CTs. Elas destacam sua incapacidade de oferecer cuidado humanizado e ético. Isso está em conformidade com as normativas nacionais e internacionais de direitos humanos (MPF, 2024).

    Os Marcos Históricos da Luta Antimanicomial

    • A luta antimanicomial no Brasil ganhou força no final da década de 1970. Isso aconteceu com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). Este movimento denunciava as condições degradantes dos manicômios.
    • O Manifesto de Bauru, de 1987, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, consolidou a luta. Tornou-se um movimento político. Também se tornou um movimento social (Barbosa, Costa & Moreno, 2012).
    • Nesse contexto, é fundamental destacar o papel de Franco Basaglia. Esse psiquiatra italiano revolucionou o tratamento da saúde mental. Basaglia defendeu a desinstitucionalização e o cuidado em liberdade.

    Suas ideias influenciaram diretamente o movimento antimanicomial brasileiro e a reforma psiquiátrica.

    • A Lei nº 10.216/2001 redirecionou o modelo assistencial em saúde mental. Ela prioritiza o cuidado em liberdade. A lei estabelece os direitos das pessoas com transtornos mentais.

    Essa lei tornou-se a base legal para a reforma psiquiátrica brasileira. Ela promoveu a substituição dos manicômios. E criou dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a RAPS (Lüchmann & Rodrigues, 2007). 

    • A Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu pela primeira vez em 1987. Este evento foi marcante para ampliar o debate. Ele também consolidou a inclusão da saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).
    • A IV Conferência Nacional de Saúde Mental (2010) reafirmou o papel dos movimentos sociais. Esses movimentos foram importantes para a consolidação da Reforma Psiquiátrica (Barbosa, Costa & Moreno, 2012).

    Riscos de Retrocesso: Financiamento das CTs e a Lógica Manicomial

    É fundamental analisar o passado para evitar repetir os erros do presente.

    • O documentário Holocausto Brasileiro expõe as condições desumanas do Hospital Colônia de Barbacena. Mais de 60 mil pessoas morreram devido a maus-tratos, negligência e exclusão sistemática (Arbex & Mendz, 2016).
    • Cenários de horror como o do Hospital Psiquiátrico do Juqueri revelam práticas alarmantes. A superlotação e os abusos são evidentes.
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    Esses exemplos mostram como as instituições podem ser instrumentos de repressão social. A desses locais reforça a necessidade de vigilância contínua para que tais práticas não se repitam.

    Nesse sentido, o financiamento público das CTs representa um risco de retrocesso na luta antimanicomial.

    Ao investir em um modelo que se baseia na internação e na segregação, corre-se o risco. Esse risco é de perpetuar a lógica manicomial de exclusão e controle social.

    Esses horrores do passado não estão tão distantes da realidade atual das CTs. Elas se baseiam na segregação e no controle. Assim, dão continuidade a práticas que deveriam ter sido superadas pela luta antimanicomial.

    A Perspectiva Sociológica: Foucault, Goffman e Deleuze

    Michel Foucault (2019), em História da Loucura na Idade Clássica, diz que hospitais psiquiátricos historicamente operaram como dispositivos de exclusão.

    Eles isolam e marginalizam corpos considerados improdutivos ou desviantes pela sociedade.

    Essas práticas reforçam uma lógica de exclusão e normalização. Elas moldam os indivíduos para que se adequem às expectativas e convenções sociais.

    Nada inclusivo, como você pode constatar.

    Despersonalização e perda da identidade

    De forma complementar, Erving Goffman (2001), em Asilos, analisa as instituições totais, como prisões, manicômios e conventos. Ele destaca como elas isolam os indivíduos do mundo exterior e exercem controle total sobre suas vidas. Essas instituições geram processos de despersonalização e perda de identidade, convertendo pessoas em “internos” definidos apenas por sua condição institucional.

    Esse conceito também é aplicável às CTs. Elas frequentemente reproduzem essas dinâmicas. Submetem indivíduos a rígidos regimes de isolamento e controle.

    Medicalização da vida

    Gilles Deleuze (2011) escreveu a obra O Anti-Édipo. Escrito em parceria com Félix Guattari, critica os dispositivos de poder que promovem a medicalização da vida.

    Eles também criticam a patologização dos comportamentos. Deleuze e Guattari destacam como o desejo humano é livre e produtivo por natureza. No entanto, ele é capturado por normas sociais, familiares e psiquiátricas. Tais normas reprimem e controlam o desejo.

    Essa crítica também pode ser aplicada às CTs. Elas frequentemente operam sob concepções moralizantes e medicalizantes. Com isso, normalizam comportamentos e disciplinam os indivíduos. Assim, ignoram a complexidade e a singularidade do sofrimento psíquico.

    O Papel do Psicólogo na Luta Antimanicomial

    Como psicólogos, temos a responsabilidade de construir práticas humanizadas e éticas em saúde mental.

    Isso inclui advogar por políticas públicas que fortaleçam a RAPS. É preciso denunciar violações de direitos. Devemos combater estigmas. Também é fundamental promover a reintegração social de pessoas em sofrimento psíquico, garantindo-lhes dignidade e inclusão.

    Quando o Estado se dá o direito de internar e segregar pessoas com transtornos mentais, ele abre um precedente perigoso.

    Hoje, são pessoas com transtornos mentais. Amanhã, poderiam ser pessoas com outras condições. Isso inclui deficiências ou aquelas pertencentes a grupos sociais marginalizados. A história nos mostra que a exclusão nunca é a solução.

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    A luta antimanicomial não é apenas sobre saúde mental, mas sobre liberdade, dignidade e direitos humanos.

    Ela busca garantir que ninguém seja segregado.

    Ela também quer que ninguém seja tratado como um fardo pela sociedade, apenas por não se encaixar em padrões impostos.

    Mais do que isso, ela nos lembra que internações forçadas e práticas excludentes não curam, mas agravam o sofrimento.

    Para construir um mundo mais justo e humano, devemos priorizar políticas públicas. Elas devem promover a inclusão e o cuidado em liberdade. Também precisam respeitar a singularidade de cada pessoa.

    Não podemos permitir retrocessos.

    É hora de agir: fiscalizar, denunciar violações, participar de debates. E apoiar o fortalecimento de um sistema de saúde mental baseado na dignidade e na inclusão. A luta antimanicomial é de todos nós. Se ela perder, todos nós perdemos.

    Reportagens:

    Organizações e Documentos Oficiais:

    Referências

    ARBEX, Daniela; MENDZ, Armando (Direção). Holocausto Brasileiro. Adaptação do livro homônimo de Daniela Arbex. Brasil: 2016. Documentário, 90 min. Classificação: 16 anos.

    BARBOSA, Guilherme Correa; COSTA, Tatiana Garcia; MORENO, Vânia. Movimento da luta antimanicomial: trajetória, avanços e desafios. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 45-50, 2012.

    BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

    BRASIL. Lei Complementar nº 187, de 16 de dezembro de 2021. Regulamenta a imunidade tributária de instituições de assistência social e religiosas.

    CONSELHO NACIONAL DE DEFENSORES PÚBLICOS GERAIS (CONDEGE). Nota Técnica sobre a Relevância das Comunidades Terapêuticas e Financiamento Público.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011.

    FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

    FRENTE DA SAÚDE MENTAL. Raio-X das Comunidades Terapêuticas.

    GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira Leite. 7ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

    INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras: características, capacidades e desafios. Brasília: IPEA, 2017.

    LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn; RODRIGUES, Jefferson. O movimento antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 2, p. 399-407, 2007.

    MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Comunidades terapêuticas são inspecionadas em ação nacional realizada pelo MPF, MPT e MPs Estaduais.

    SINPSI. Proprietários de comunidade terapêutica são condenados a 31 anos de prisão.


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