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Diagnóstico psicológico é abuso de poder?

    Em algum momento da história, a “vontade de fugir da escravidão” foi considerada um psicológico ou psiquiátrico.

    A drapetomania foi um termo cunhado pelo médico estadunidense Samuel Cartwright em 1851.

    Ele descreveu o desejo dos negros escravizados de escapar de seus senhores como uma doença mental. Surpresa, surpresa, um médico branco.

    O essencial desse diagnóstico é o seguinte: veja, essas pessoas não estão cumprindo as expectativas do sistema produtivo vigente. Logo, estão doentes. Precisam ser tratadas (consertadas) para que voltem a “funcionar” adequadamente.

    Não, não é o sistema produtivo que deve mudar. Está tudo funcionando lindamente. Estamos ganhando dinheiro.

    Imagem de uma pessoa sendo oprimida por diagnóstico psicológico, tendo que se adaptar a um mundo que não a aceita como ela é

    Você não está “funcionando” de um jeito produtivo

    Outro diagnóstico psicológico do Dr. Cartwright, a desistesia aepótica, era aplicado a negros libertos que apresentavam sonolência e desmotivação para o .

    Sugeriu-se que essa “apatia” deveria ser tratada. Afinal, essas pessoas não estavam funcionando adequadamente.

    Em ambos os casos, o objetivo era justificar a opressão e garantir a continuidade da exploração.

    Esses exemplos mostram como a Psicologia e a Psiquiatria podem ser usadas para manter relações de poder. E ainda são.

    O tratamento para a drapetomania eram açoites. Para a desistesia, açoites e unguentos, pois os acometidos viviam com feridas na pele (não imagino o motivo).

    Imagina o médico escrevendo isso na receita.

    Eu fico pensando se, no futuro, as pessoas olharão com o mesmo espanto para nós e dirão…

    “Mas… eles davam Ritalina para… crianças?!?!”

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    E se a gente invertesse as coisas?

    Essa discussão se conecta com as provocações das pesquisadoras Kaori Wada e Karlee Fellner.

    Elas questionam se transtornos como Transtorno de Dependência de Poder deveriam constar no DSM como um diagnóstico psicológico. Esse transtorno é uma compulsão por dominar e chefiar.

    Também apresentam a Síndrome de Acumulação Colonial cujo sintoma é um acúmulo obsessivo de terras e riquezas.

    Eles perguntam se deveria constar no DSM, o manual diagnóstico da psiquiatria.

    Quem é doente depende de quem olha, depende de quem tem o poder

    Sim, afinal, ter 500 bilhões de dólares não me parece coisa de gente sadia. Parece pra você? Se sim, não sei, talvez você precise ir ao médico ou a um psicólogo muito do bom.

    Inclusive, uma pessoa assim faz mal para as 7 bilhões que têm o desgosto de dividir o planeta com ela. Faz mal mesmo para quem acha isso cool.

    Claramente, alguém nessas condições não está “funcionando” direito.

    Essas duas pesquisadoras, com essa brincadeira um tanto séria, denunciam a psicolonização.

    Este termo descreve a imposição de modelos de saúde mental ocidentais a populações indígenas, negras e não ocidentais através do diagnóstico psicológico e psiquiátrico.

    A psicolonização considera o colonial como um transtorno de personalidade. Isso, em vez de examinar suas raízes históricas e estruturais.

    Diagnósticos como instrumentos de controle

    Ainda hoje, transtornos como ansiedade, depressão e são tratados como falhas individuais. Só para citar alguns dos transtornos arrolados no DSM.

    Isso acontece sem considerar o impacto das condições de vida e trabalho.

    É mais fácil dar um diagnóstico psicológico e medicar alguém do que questionar um sistema que sobrecarrega pessoas com demandas inatingíveis.

    Em vez de perguntar “por que você está ansioso?”, a resposta já vem pronta e se resume a “você tem ansiedade”.

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    E, assim, se ignora a possibilidade de que o ambiente de trabalho seja insalubre.

    Que a precarização da vida cause sofrimento.

    Ou que o problema não esteja no indivíduo, mas nas estruturas que o cercam.

    Frantz Fanon, um dos principais teóricos da descolonização, denunciava que “é impossível tratar a mente” isoladamente. Antes, é necessário enfrentar as estruturas que a esmagam.

    Ou seja, não há como falar de saúde mental sem considerar o contexto social, histórico e político que a molda.

    Quem ganha com a patologização?

    A medicalização excessiva da vida cotidiana e a banalização do diagnóstico psicológico não acontece por acaso.

    A indústria farmacêutica tem um interesse direto na expansão dos diagnósticos psicológicos. Cada nova categoria incluída no DSM cria um novo mercado para medicamentos.

    Isso pode levar à patologização de comportamentos normais. Pode também resultar no aumento da prescrição de substâncias para manter pessoas produtivas, mesmo em condições adversas.

    Ora, imagine que eu trabalho nove horas diárias. Tenho que pegar duas horas de ônibus para ir e duas para voltar. Claro que eu desenvolvo problemas mentais. Eu também desenvolvo problemas físicos. Isso é perfeitamente esperado. O problema não sou eu. É como as coisas estão funcionando.

    O mesmo fenômeno ocorre em diagnósticos relacionados a neurodivergências. Alguns exemplos são o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

    Muitas abordagens não consideram que a dificuldade está na falta de adaptação do ambiente às necessidades dessas pessoas.

    A dificuldade não está nelas mesmas.

    Assim, soluções médicas são priorizadas.

    Por outro lado, ajustes estruturais — como mudanças na e no mercado de trabalho — são negligenciados.

    Caminhos para uma psicologia crítica

    A história nos mostra que o diagnóstico psicológico pode ser usado para controlar e silenciar. Ela também nos ensina que a psicologia tem o potencial de questionar essas estruturas.

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    Movimentos como a luta antimanicomial, a psicologia comunitária e abordagens críticas na saúde mental oferecem novas perspectivas. Eles propõem maneiras alternativas de compreender o sofrimento psíquico.

    O Power Threat Meaning Framework (PTM Framework), por exemplo, sugere uma abordagem diferente. Em vez de classificar como parte de uma doença, devemos perguntar: “O que aconteceu com você?”.

    Esse modelo considera o impacto de traumas, desigualdades e experiências de vida na construção do sofrimento. Ele oferece uma alternativa aos rótulos diagnósticos tradicionais.

    E essa lista de coisas, por vezes, atravessa gerações.

    Conclusão

    O diagnóstico psicológico nunca é neutro.

    Eles carregam consigo relações de poder, interesses econômicos e definições sociais do que é normal ou patológico.

    Questionar esses processos não significa negar a existência do sofrimento psíquico, mas sim perguntar: o que estamos tentando consertar?

    As pessoas ou o mundo que as adoece?

    Ao ampliar esse debate, a Psicologia pode cumprir seu papel ético e social. Ela garante que sua prática esteja a serviço da liberdade, da dignidade e do bem-estar das pessoas.

    Inclusive, este é o primeiro princípio fundamental do Código de Ética da Pessoa Psicóloga:

    O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    A Psicologia não deve servir para a manutenção de sistemas que perpetuam sofrimento e exclusão.

    E aí? O que você acha? Diagnóstico é abuso de poder? Deixe nos comentários ou mande uma mensagem.


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