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Guia para uso de telas por crianças e adolescentes: recomendações versus a realidade social brasileira

    No dia 11 de março, o Governo Federal lançou Crianças, Adolescentes e Telas – Guia sobre usos de dispositivos digitais.

    O material para orientar o uso de telas foi produzido por um grupo de . Este grupo reuniu diversos ministérios e especialistas. Isso inclui o Conselho Federal de Psicologia ().

    O documento mostra como algo pode ser bem intencionado e “baseado em evidências” e, simultaneamente, admitir estar desconectado da realidade que ele mesmo aponta.

    Isso, embora essas questões da realidade social sejam citadas no guia.

    Enquanto elas existirem, as metas apontadas não serão atingidas.

    As recomendações não serão seguidas por simples impossibilidade.

    Uso de telas por crianças: de fato, não é adequado que crianças usem telas, como o celular, mas a nossa realidade não permite algo diferente por enquanto

    Um guia para o País das Maravilhas

    O guia se baseia em evidências científicas sobre os impactos do uso de telas no desenvolvimento cognitivo e emocional.

    Também aborda riscos como cyberbullying, manipulação algorítmica e sedentarismo.

    E eu imagino que deu trabalho. Posso visualizar as longas reuniões em que se debateu a presença dessa ou daquela frase. Do uso ou não uso de uma expressão que seria cientificamente incorreta. Da citar ou não um estudo que teria ou não a revisão de pares adequada.

    A proposta do documento é relevante, claro. Embora eu pareça, não sou tão bobo a ponto de dizer algo diferente disso. Ele tem sua importância.

    De fato, o Brasil precisa de diretrizes para a mediação digital na infância.

    No entanto, as recomendações ignoram fatores sociais – ainda que o documento os cite – que tornam essas orientações pouco aplicáveis.

    Quer dizer: embora o próprio documento reconheça a existência das questões, as recomendações em si foram feitas para o País das Maravilhas.

    As famílias, de fato, não têm tempo, conhecimento e estrutura para regular o uso de dispositivos digitais.

    Recomendações que não consideram a realidade

    Entre as diretrizes do guia, destacam-se:

    Sem uso de telas antes dos 2 anos, salvo videochamadas com familiares.
    Sem smartphone próprio antes dos 12 anos.
    Respeitar a Classificação Indicativa para redes sociais e aplicativos.
    Supervisão parental para adolescentes (12-17 anos).
    Uso incentivado para acessibilidade em crianças e adolescentes com deficiência.

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    Concordo com todas. Faz todo o sentido.

    Essas recomendações são coerentes do ponto de vista científico. Estudos indicam que o uso excessivo de telas pode atrasar o desenvolvimento da linguagem. Pode também prejudicar o sono. Além disso, afeta a saúde mental. O problema é que a ciência, sozinha, não basta.

    A Psicologia não pode se limitar a diretrizes baseadas apenas em estatísticas. Ela precisa considerar o contexto social e histórico onde essas diretrizes serão aplicadas.

    Quando as condições sociais não favorecem a implementação dessas recomendações, elas se tornam ideais inatingíveis.

    E, se as recomendações foram escritas considerando uma realidade de desigualdade – e isso é reconhecido no próprio corpo do documento -, para quem essas recomendações foram escritas? As pessoas responsáveis por crianças na periferia vão lê-las e dar de ombros. As crianças e adolescentes, então…

    O abismo entre teoria e prática

    A realidade brasileira é marcada por desigualdade. Para muitas famílias, a tela não é uma opção, mas uma necessidade. O próprio guia reconhece isso em alguns de seus trechos:

    📌 Crianças sem espaços seguros para brincar. Muitas vivem em bairros violentos ou sem áreas de lazer. A tela se torna a única alternativa acessível para entretenimento.

    📌 Pais sobrecarregados sem tempo para supervisão. Longas jornadas de trabalho e a falta de creches tornam difícil o acompanhamento ativo do uso de dispositivos digitais.

    📌 Falta de letramento digital. Muitos responsáveis não têm conhecimento suficiente para orientar os filhos no uso de telas seguro, bem como das redes sociais.

    📌 O como ferramenta de segurança. Em cidades com altos índices de , muitas famílias dependem do smartphone para manter contato com os filhos.

    📌 digitalizada. O uso de telas já faz parte da rotina escolar. Impedir o acesso pode criar uma barreira educacional.

    Psicologia baseada em evidências ou na experiência humana?

    O guia se baseia em estudos que mostram os danos do uso de telas excessivo. Mas ele falha ao ignorar o contexto onde essas evidências serão aplicadas. Mesmo reconhecendo isso.

    A Psicologia não deve ser apenas um repositório de pesquisas. Ela precisa considerar a experiência real das famílias. O que fazer quando pais não têm outra opção? Como aplicar essas recomendações sem que elas apenas reforcem a culpa e a sensação de inadequação?

    O problema não está apenas no uso das telas, mas na falta de alternativas. Crianças passam mais tempo em dispositivos digitais porque:

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    ❌ Não têm acesso a atividades extracurriculares gratuitas.
    ❌ Não têm espaços públicos de lazer adequados.
    ❌ Não têm pais disponíveis para brincar com elas.

    Imagino os pais de famílias periféricas lendo esse documento, nas duas horas de transporte que pegam para ir ao trabalho. E lendo a outra metade na volta. E sua frustração.

    Mas o guia, a certo momento, diz como essas pessoas devem se sentir:

    As recomendações aqui presentes, bem como as ferramentas oferecidas pela indústria, não devem servir para despertar angústias, sentimento de culpa ou para que pessoas cuidadoras e responsáveis se sintam solitários nessa difícil tarefa. Antes, importa comunicar às famílias sobre como também outros atores são responsáveis por prover recursos, proteger integralmente e promover os direitos de crianças e adolescentes, conforme estabelecido pelo artigo 227 da Constituição Federal brasileira.

    Até fiquei mais tranquilo agora que disseram como devo me sentir, diz o sujeito se equilibrando na condução enquanto tenta ler mais um parágrafo, preocupado se terá dinheiro para comprar comprar o material escolar do filho.

    A julgar pela sobrecarga que as pessoas psicólogas vêm vivendo, nem elas mesmas conseguiriam aplicar ao menos uma parte das recomendações.

    Se o Estado quer reduzir o uso excessivo de telas, deve oferecer opções reais. O problema não será resolvido apenas com recomendações individuais.

    O que poderia ser feito?

    Em vez de apenas orientar pais a restringirem o uso de telas, o governo poderia propor soluções estruturais. Algumas medidas essenciais:

    Educação midiática para famílias. Ensinar responsáveis a ajudarem seus filhos a usarem as telas com consciência. Neste sentido, o guia já é um passo.

    Políticas públicas para lazer e cultura. Criar mais espaços seguros para crianças e adolescentes interagirem sem depender da . Sem isso, podem fazer as recomendações que quiserem. Elas não serão seguidas.

    Regulação das plataformas digitais. Evitar que redes sociais explorem a atenção infantil com notificações e algoritmos viciantes. O povo da grana quer lucrar em cima da sua atenção. Vamos sonhar com um futuro em que isso seja melhor regulado.

    Alternativas acessíveis ao entretenimento digital. Mais investimento em esportes, bibliotecas, oficinas culturais e espaços de convivência. Mais uma vez: sem iniciativas assim, qualquer recomendação quanto ao uso de telas é inócua.

    Enquanto isso não acontecer, o celular não deixará de ser uma solução fácil para os problemas que vêm antes delas.

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    Repito: no momento, o celular e as telas não são um problema. São uma solução. Uma solução péssima, mas uma solução.

    A responsabilidade pelo uso saudável das telas não pode recair apenas sobre as famílias. Empresas de tecnologia e o Estado também devem ser responsabilizados com carga muito maior.

    Boas intenções, pouca aplicabilidade

    O Guia sobre usos de dispositivos digitais é um documento importante, mas ainda desconectado da realidade brasileira. Mais interessante: ele reconhece isso em seu corpo.

    Enquanto a desigualdade limitar o acesso a espaços de lazer, a supervisão digital será um privilégio de poucos. A Psicologia, mais do que seguir evidências, precisa estar ancorada na experiência humana. Diretrizes só são eficazes quando levam em conta o mundo real. Sem isso, são só palavras.

    Sem soluções concretas, o guia corre o risco de ser mais um documento bem-intencionado, mas ineficaz.

    O guia e o Código de Ética

    O Código de Ética Profissional da Pessoa Psicóloga estabelece diretrizes importantes. Sobretudo em seu terceiro princípio: o profissional deve atuar com responsabilidade social.

    Ele deve analisar crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural​.

    Esse princípio fundamental reforça que a Psicologia não pode se limitar a diretrizes teóricas.

    Além disso, não deve se basear apenas em evidências estatísticas. É básico considerar o contexto onde serão aplicadas.

    Essas desigualdades limitam a implementação das recomendações. O próprio guia reconhece. Não há alternativas acessíveis de lazer, cultura e segurança digital. Esses desafios são vividos por grande parte da população brasileira.

    O guia traz as recomendações, mas as recomendações, elas mesmas, parecem ignorar boa parte do texto que consta do documento.

    De um lado, o guia traz o ideal. Este ideal é o que os pais deveriam fazer. No entanto, o próprio guia admite suas impossibilidades em vários de seus trechos.

    No entanto, o guia é um importante passo para o início de discussão de problemas e contradições que ele mesmo traz. Isso pode ser fundamental para resoluções dos problemas reais que estão por trás de suas preocupações.

    Referência

    BRASIL. Secretaria de Social da Presidência da República. Crianças, adolescentes e telas – Guia sobre usos de dispositivos digitais. Brasília, 2025.


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