As sexualidades dissidentes, como as práticas BDSM, são frequentemente envoltas em silêncio, julgamento e estigma. Mas o que acontece quando essas práticas encontram espaço para se expressar, ensinar e se proteger?
O ciberespaço possui múltiplas possibilidades de conexão e anonimato. Ele vem sendo um terreno fértil para a construção de identidades e estilos de vida. Esses estilos são baseados em prazer, consentimento e cuidado mútuo.
Este artigo oferece reflexões com base no estudo Sexualidades dissidentes: um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. O estudo é de Vera Lucia Marques da Silva e foi publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva.
A pesquisa usa uma netnografia para compreender como pessoas praticantes do BDSM se apresentam na internet. Elas negociam significados, experiências e identidades.
Índice

O que são sexualidades dissidentes?
A expressão sexualidades dissidentes refere-se a modos de viver a sexualidade que escapam das normas tradicionais. Incluem práticas não reprodutivas fora do casamento. Também incluem interações entre pessoas do mesmo gênero.
Essas práticas ocorrem em locais públicos ou com uso de objetos. Envolvem dor e papéis eróticos não convencionais. O BDSM — sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo — é uma dessas formas.
Essas práticas, embora estigmatizadas, podem ser entendidas como expressões legítimas da subjetividade e da busca por prazer. Mais do que apenas jogos sexuais, muitos reconhecem o BDSM como uma forma de vida. Para eles, é um modo de existir no mundo.
BDSM e identidade: mais do que um jogo
A pesquisa revela que esta posição, para muitos adeptos, é mais do que um papel em uma encenação sexual. Ela representa uma parte de sua identidade. Isso inclui até quem se identifica como switcher. Este é alguém que alterna entre os dois papéis. Muitas vezes, eles são vistos com desconfiança dentro da própria comunidade, por desafiar hierarquias rígidas.
Isso levanta uma questão: por que é tão importante que os papéis estejam tão bem definidos? Precisamos socialmente organizar os desejos em categorias fixas? Ou, na fluidez, existe uma ameaça à ordem simbólica?
O ciberespaço como espaço de construção
Blogs, redes sociais e sites como o FetLife permitem que essas pessoas compartilhem experiências. Eles também escrevem manuais e definem limites. Além disso, ensinam sobre práticas seguras. Esses espaços digitais fortalecem a comunidade. Eles também exercem um controle interno. Isso distingue quem é “do meio” e quem pode representar riscos ao grupo.
Além disso, a internet facilita o acesso de iniciantes a informações seguras. Ela permite que neófitos se aproximem do universo BDSM sem exposição precoce. Isso reforça o caráter pedagógico e cuidadoso dessas redes.
SSC e a ética do cuidado no prazer
Um dos pilares das práticas BDSM é o princípio SSC — Seguro, São e Consensual. Isso significa que todas as práticas devem ser feitas com segurança técnica, sanidade mental e consentimento mútuo. Essa tríade cria uma base ética poderosa. Ela protege o corpo, os vínculos e os limites subjetivos de cada pessoa. Alem disso existem outros protocolos de segurança no BDSM.
A pesquisa mostra que esse princípio não é apenas retórico. Ele é defendido com seriedade pelas comunidades virtuais. Além disso, ele é reforçado nos “manuais” e nas trocas de experiência. Trata-se de um erotismo profundamente comprometido com o respeito e com a autonomia. É bem distante das caricaturas que associam o BDSM à violência ou à patologia.
Submissão com agência e dominação com cuidado
Um dado curioso revelado pelo estudo é que a pessoa submissa muitas vezes detém o poder real da relação. Isso vai ao contrário do que se imagina. É ela quem define os limites e o que deseja ou não vivenciar. Esse deslocamento de poder pode parecer contraditório. No entanto, revela um aspecto sofisticado das relações eróticas dissidentes. Isso envolve a negociação contínua de sentidos, desejos e fronteiras.
O BDSM ao dramatizar as hierarquias e colocar o poder em cena, escancara as dinâmicas. Estas dinâmicas muitas vezes se dão de forma invisível nos relacionamentos convencionais. Ao tornar explícitas as regras, o BDSM talvez nos diga mais sobre a estrutura das relações do que imaginamos.
O BDSM como estilo de vida e projeto de si
A autora propõe que, no contexto contemporâneo, o BDSM se insere entre os chamados “estilos de vida reflexivos”. Não se trata apenas de um conjunto de práticas. Trata-se de uma forma de construir uma identidade. É também um projeto de autodesenvolvimento.
Nesse sentido, o BDSM dialoga com três conceitos fundamentais do sociólogo Luís Fernando Duarte:
- Perfectibilidade: a ideia de que o ser humano pode se aprimorar continuamente
- Experiência: o corpo como campo de experimentação
- Fisicalismo: a valorização do corpo como expressão de si
A submissão, por exemplo, é descrita por alguns adeptos como um caminho de superação de traumas e tabus. Já a dominação é vista como uma forma de exercer responsabilidade sobre o outro. Tudo isso dentro de uma lógica comunitária, que ensina, acolhe e regula.
Por que isso importa para a Psicologia?
Este estudo revela as narrativas e experiências das sexualidades dissidentes. Ele nos estimula a repensar os limites do que vemos como saudável. Também questionamos o que é considerado normal e aceitável. Em vez de partir do diagnóstico, propõe-se escutar as histórias, entender os contextos e valorizar a pluralidade dos desejos.
No campo da Saúde Coletiva e da Psicologia, essa escuta é essencial. Afinal, quantas práticas e identidades continuam sendo marginalizadas em nome de uma moral disfarçada de ciência?
A sexualidade, sobretudo quando dissidente, ainda é um campo em disputa. Escutá-la com respeito e curiosidade é um gesto clínico e político.
Referência
SILVA, Vera Lucia Marques da. Sexualidades dissidentes: um olhar sobre narrativas identitárias e estilo de vida no ciberespaço. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 10, p. 3309-3318, 2018.
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